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Para além de Aquelas Muralhas Cinzentas...
J. Guinsburg
“A trajetória de Paulo Dantas, inicialmente identificada à geração de 45, assinala um movimento de retorno ao chão natal, fundindo o sentimento de inadaptação interior com o cenário de danação e agonia do Nordeste”
Os sertões de Paulo Dantas
Nascido em Simão Dias, Sergipe, em 1922, Paulo Dantas viveu na Bahia até se radicar no Rio de Janeiro (onde trabalhou na editora Civilização Brasileira) e depois em São Paulo, cidade na qual morreu em agosto de 2007. Autor de vários estudos sobre Euclides da Cunha (dentre eles Euclides: Opus 66, por ocasião do centenário de nascimento do criador de Os Sertões), também dedicou trabalhos a Monteiro Lobato e Guimarães Rosa. Dentre seus mais de 30 livros, destacam-se obras de ficção como Sertão Desaparecido (sobre o cangaço), O Lobo do Planalto (sobre suas experiências em Brasília), Aquelas Muralhas Cinzentas..., Cidade Enferma e a trilogia nordestina composta por Chão de Infância, Purgatório e O Livro de Daniel. O ensaio de J. Guinsburg aqui publicado foi reproduzido do livro Motivos (Comissão Estadual de Literatura de São Paulo, 1964), tendo sido escrito originalmente por ocasião do lançamento dos dois primeiros títulos da trilogia. O volume inclui ainda uma resenha de 1958 sobre O Capitão Jagunço, romance de Paulo Dantas que tem como protagonista um sobrevivente da guerra de Canudos.

Leia a seguir ensaio sobre o romancista Paulo Dantas, que morreu no ano passado, escrito originalmente pelo crítico J. Guinsburg em 1956

O NORDESTE, UM TEMA INESGOTADO

O Nordeste é um braseiro ardendo na consciência nacional. O seu sofrimento e o seu protesto marcam profundamente a moderna literatura brasileira, condicionando a obra de alguns dos mais lídimos expoentes desta etapa em que os nossos escritores, após as revoluções políticas e culturais que alteraram a fisionomia do mundo e derrubaram velhas concepções e cânones, despertaram para a realidade de seu país e procuraram integrar sua contribuição no processo de autoconsciência nacional. Evidentemente, nesta fase em que se abandonam o verbalismo dos salões e as facilidades das capitais, quando se deseja estabelecer a literatura no chão de vastas áreas geográficas e humanas relegadas ao esquecimento e transformá-la em expressão, senão em brado, dos problemas e das condições, uma região tão típica como o Nordeste, lastrada com um quadro de berrantes contradições e desníveis, com uma complexa estrutura onde se chocam, inconciliáveis e inconclusos, processos e padrões que se acumulam há quatro séculos, deveria constituir-se naturalmente em tema.

Assim, seu solo calcinado fixou, por exemplo, a prosa áspera e incisiva de um Graciliano Ramos, cujas Vidas Secas formam não só o ponto alto de um ciclo que ostenta os nomes de Jorge Amado, José Lins do Rego, Amando Fontes, Jorge de Lima, José Américo, Rachel de Queiroz e outros, mas também do tema nordestino considerado em seu conjunto, isto é, despido de suas variantes locais e reduzido à sua essência artística e social.

Entretanto, e devemos reconhecê-lo, esta obra-prima de análise social e psicológica, este grito de revolta contra uma ordem de coisas que completa impiedosamente a ação cataclísmica da natureza e resseca no ser humano a própria condição de homem, por mais amplo que seja o seu âmbito, por mais realizada que esteja do ponto de vista estético, por mais justo que seja seu enquadramento dos fatores objetivos e subjetivos, representa um ponto de partida e nunca o de chegada. Por seu intermédio e das demais criações deste ciclo, o Nordeste, como tema literário, adquiriu forma estética palpável, concreta, expôs seus lineamentos, mas não se esgotou, mesmo porque seria impossível que isso acontecesse num único momento histórico e na perspectiva de uma só fase, apesar das diferenças de temperamento, estilo e tendência de seus vários representantes. Assim, ainda que o próprio desenvolvimento não criasse novas motivações (por exemplo, o impacto de Paulo Afonso no panorama social da região, o pronunciamento dos traços cosmopolitas e universais do Recife – é o caso de Osman Lins – ao lado da vasta área de um vivíssimo localismo sertanejo etc.), restaria a necessidade do aprofundamento e captação de aspectos importantes à fisionomia e interpretação do Nordeste.

Por isso não cremos que se possa falar em exaustão do tema, embora alguns críticos o considerem definitivamente ultrapassado. Sem dúvida, o grupo exponencial do assim chamado “ciclo nordestino” já transpôs o seu auge, ao menos como conjunto. Mas, enquanto não se verificar uma transformação radical na estrutura do Nordeste, enquanto o seu drama persistir como um espetáculo periódico de secas, retirantes, paus-de-arara etc., eletrizado, além disso, por uma tremenda carga de um passado econômico, político e psicológico que avulta na derrocada de suas formas de vida e de um presente que acresce novas contradições à sociedade em que atua sem haver resolvido as velhas, enquanto tudo isso subsistir não acreditamos que esteja ressecado o humo nutridor de uma literatura específica da região. E, de fato, sem falarmos nas perspectivas do romance de fundo urbano, social ou psicológico, os próprios temas típicos apresentam ricos filões – o cangaceiro, o beato, o místico etc., até agora quase inexplorados. As poucas tentativas feitas nestes domínios: Calunga de Jorge de Lima (romance escrito há duas décadas e que é, nalguns aspectos ora analisados, uma obra precursora), os Cangaceiros e Pedra Bonita de José Lins do Rego, a Assunção de Salviano de Antônio Callado e Chão de Infância e Purgatório de Paulo Dantas indicam realmente novas possibilidades para o romance nordestino e um desenvolvimento da etapa anterior, já que por enquanto não ousaríamos falar em renovação.

Neste sentido, parece-nos particularmente interessante a contribuição de Paulo Dantas, por se tratar de um escritor jovem, cujos livros até bem pouco seguiam, na sua temática e na sua atitude perante o mundo, o caminho do que chamaríamos a geração de 45, mas que de repente redescobriu o seu chão natal, dedicando-lhe uma trilogia que já se encontra em seu segundo volume e que constitui um retorno à região, mas por um roteiro e com uma visão inteiramente novos.

EM BUSCA DE CHÃO

A evolução literária que conduziu Paulo Dantas de Aquelas Muralhas Cinzentas... até o Purgatório é, antes de mais nada, a história de um jovem talento que, desgarrado de seu chão, lançado na solidão urbana, no desespero da fome e no delírio da tuberculose, descobre não só o mundo dos párias da sorte, dos enfermos e humilhados, dos injustiçados e oprimidos, mas também o seu próprio insulamento numa sociedade que o aceita para rejeitá-lo e, ao mesmo tempo, a sua incapacidade de identificar-se com qualquer categoria, apesar de desejá-lo ardentemente. Assim, instado por uma crescente sensação de não pertinência, por uma consciência cada vez maior de sua condição e das cadeias que prendem o homem, mas incapaz de transformá-la em revolta ativa, em grito de convocação, pois não mais possui uma raiz que vitalize o protesto reivindicador, reflui cada vez mais sobre si próprio, na busca de um ponto de apoio, de um fator de continuidade, de uma base de estabilidade, até que atinge, no fundo de seu ser, a distante região biográfica onde todas as incertezas, angústias e fugas do presente se convertem na segurança inquestionável de um passado, inquestionável porque é passado, na transfiguração idealizada, onírica, dos anos de infância, na firme terra subjetiva da lembrança.

Até aí nada de novo, apesar das peculiaridades pessoais. Trata-se de um caminho batido que corresponde perfeitamente a certos aspectos da vida numa época de transição, quando o indivíduo desintegrado de uma sociedade atomizada encontra em si mesmo os únicos valores que lhe parecem dignos de confiança. Daí, inclusive, o psicologismo, a introspecção, o subjetivismo exaustivo, acompanhado por vezes de um formalismo estético, que caracterizam a literatura contemporânea em muitas de suas manifestações. E mesmo no Brasil a chamada geração de 45, cujas origens teremos de procurar talvez, e novamente, em Graciliano Ramos, no dualismo de sua obra, onde Vidas Secas e São Bernardo figuram ao lado de Angústia e Insônia, encontrou um denominador comum neste internamento, nem sempre sincero e feliz, nas “regiões profundas” onde “tudo é lei”, segundo a sentença de Rainer Maria Rilke que constitui a epígrafe de Cidade Enferma. Mas com Paulo Dantas sucedeu que, ao se achar no próprio imo desta esfera de auto-análise, o mesmo impulso que o levara para lá, o desajustamento exacerbado pela sensibilidade quase neurótica, acionou o mecanismo de retorno para o mundo exterior. Ao invés de ficar remoendo a sua inadaptação, fundiu-a com a marginalidade de uma região, o Nordeste. Assim, através deste salto singular – impulsionado talvez por um sensualismo que encontrou na terra o humo renovador e na figura de Daniel o seu fruto aberrante mas significativo, talvez pelo choque do reencontro com a paisagem perdida, talvez pela ansiedade de sua busca de chão – o escritor em questão tomou pé num solo que lhe faltava. A princípio hesita, é claro. Não sabe se se trata apenas de um eu recuado na distância lírica (Chão de Infância) ou se de fato tateia, ainda confuso, com muita literatura, os contornos de algo concreto e objetivo – a sua cidade, a sua gente, a sua região. Mas, logo, neste mesmo livro, apercebe-se que não lida com fiapos de recordações, com transferências alucinadas feitas na solidão, mas com uma realidade machucada, estigmatizada, sofredora e angustiada, mas uma realidade e não um simples fantasma da memória. É a sua terra, a sua família.

NA SENDA DO PURGATÓRIO

O reencontro do escritor com a terra deu à sua literatura, como já dissemos, o chão pelo qual sempre ansiara em seu desvinculamento urbano. Entretanto, e aí aparece uma importante diferença em relação ao grupo nordestino da geração anterior, trata-se de um romancista que regressa à região e não de um que parte dela. Esta surge-lhe, em primeiro lugar, como um espetáculo ao qual ele, autor, se liga por alguns traços mas com o qual não forma unidade orgânica. Em certo sentido é apenas um espectador: vibrátil, sensível, sequioso, mas subjetivamente desintegrado e reduzido à posição de mero espectador. Contudo, a esta passividade contemplativa, ao êxtase visual da redescoberta, logo sucede o processo de reconhecimento da realidade, por cujo intermédio não só efetua o levantamento deste novo espaço social e espiritual, mas também estabelece contato com os elementos mais afins à sua personalidade, o que lhe possibilita, na atividade criadora, o trabalho de identificação artística. Em Paulo Dantas, este é um fator valioso para a compreensão dos caminhos de seu retorno à terra. Pois, se o primeiro processo revela-lhe um cenário de derrocada e miséria, de abandono e atraso, de ignorância e resignação, só o segundo lhe permite integrar-se – ao contrário dos que, pelo crescimento orgânico, tinham suas raízes firmes naquele solo – nestas realidades sociais onde lateja o verdadeiro Nordeste, fundir as suas angústias de marginal da grande cidade com a decadência de sua família sertaneja e com o simbolismo dostoievskiano que tal fato adquire nalguns de seus tipos mais marcantes, convertendo a visão estrangeira de um citadino, não em turismo literário, como sói acontecer, mas na autêntica e sentida participação no sofrimento de alguns indivíduos que representam, ou começam a representar, todo um grupo humano e quiçá urna sociedade.

A singularidade desta trajetória determina, a nosso ver, boa parte das qualidades e defeitos de o Purgatório. Pois, partindo principalmente da identificação e da experiência interior como forma de penetração do mundo nordestino de que se encontra separado por todas uma evolução pessoal e intelectual, entrega-se aos elementos de seu tema que lhe falam mais diretamente e faz da vivência o motor de sua obra. Busca por toda a parte o delírio, o impacto emocional capaz de lhe proporcionar, sinteticamente, sem maior esforço racional e crítico, o conhecimento das almas e do meio-ambiente e de assegurar, assim, a autenticidade de seu regresso, ou seja, de sua criação (pois, em última análise, para o escritor não há regresso...). Assim, só o sentido e vivido têm direito de expressão. Isto explica a sua atitude em face das condições que cercam suas personagens. Contenta-se em sugeri-las ou esboçá-las quando estas se lhe impõem, mas sem qualquer aprofundamento, sem um esforço mais prolongado no sentido de estabelecer suas causas e relações, em suma, seus enquadramentos funcionais. Tal fato não só impede a reconstrução romanesca mais apurada, abrindo muitos claros na estrutura da obra, como também elimina, desde logo, o protesto e a reivindicação, a não ser por contragolpe subjetivo do próprio leitor. Por outro lado, permite-lhe chegar imediatamente aos estados em que a alma atinge o ápice de intensidade e, numa espécie de ascese literária, fixá-los na inteireza obsessiva e mística de penitentes, de loucos e torturados que vivem neste mundo o inferno do além, que expiam uma falta coletiva: o pecado da carne.

O sentimento dominante em Purgatório é o de culpa. É um drama de perdição e resgate, onde uma sociedade em decomposição exibe suas pústulas e chafurda na lama da irracionalidade, mas ao mesmo tempo procura o caminho da redenção, disposta a pagar, no seu desespero e na sua agonia, o preço da renovação, mesmo que seja o da absoluta alienação. Daí por que só os culpados com consciência de culpa subsistem como personagens inteiramente realizadas. Os demais debilitam-se e volatilizam-se qual fantasmas abandonados pela emotividade do autor. É o caso de Rosto Bonito, de Jeremias, de Jovem e Conceição, dos irmãos de Daniel e do próprio Daniel enquanto não atinge a sua predestinação Em alguns, é preciso dizer, há um esforço de sustentação, pois são peças necessárias ao desenrolar da história. Mas quão esquálidas se apresentam ante as figuras poderosas, marcadas pelo fogo bíblico do castigo, de um Resmungo, de uma Sensitiva (a testemunha causticante do pecado), de um Teosóforo, de um Belmiro Evangelista, de um Hortalino (a anunciação de Daniel). Neles, gigantes do sofrimento e da penitência, Dantas infunde toda a sua potência criadora e, com o alento abrasador destas criaturas, consegue – apesar do desequilíbrio apontado – vivificar uma obra apaixonante, onde pulsa um profundo amor pelo Nordeste.

Como vemos, a sinceridade e a pureza do romancista cimentam a sua criação, aparam as suas faltas estilísticas e arquitetônicas e, o que é mais importante, arrastam-no para fora de sua dimensão individual, levando-o, talvez a despeito dele próprio, para a esfera coletiva. Purgatório transforma- se, assim, não apenas na purgação noturna de um eu narrador e no relato expiatório de uma decadência, mas no documento autêntico e humano de uma região em que medram tipos e dramas desta ordem.


J. GUINSBURG é professor de Teoria do Teatro na ECA-USP, crítico literário, autor de numerosos estudos sobre cultura ídiche e sobre teatro. Editor da Perspectiva, uma das mais importantes editoras do país, é também ficcionista, autor do volume de contos O que aconteceu, aconteceu (Ateliê Editorial).


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