Com Dostoiévski: O Manto do Profeta
(1871-1881), Edusp conclui a publicação
da monumental biografia do
romancista russo escrita pelo crítico
norte-americano Joseph Frank |
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Dostoiévski: O Manto do Profeta (1871-1881) Joseph Frank
Tradução
de Geraldo Gerson de Souza Edusp 948 págs. – R$ 135 | |
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Numa biografia de E. M. Cioran, o ensaísta Patrice
Bollon, após assinalar que Dostoiévski
era a fonte primordial do filósofo romeno, nota
que na França o autor de Os Demônios é visto
sobretudo como romancista ou, “no limite extremo, como
um genial psicólogo das profundezas da alma humana”. E
acrescenta: “Ora, na Rússia – e não esqueçamos jamais o
peso, para Cioran, da cultura ortodoxa e de suas leituras de
Chestov e Berdiaev – trata-se de uma evidência para todos
os pensadores: Dostoiévski é também um metafísico; e, derivada
de sua visão do homem, há nele toda uma concepção
da Política, que aliás é freqüentemente qualificada de ‘reacionária’
” (Cioran, l’Hérétique, Gallimard, p. 174).
O fato de Cioran – filósofo que abdicou do vitalismo de
suas referências eslavas para se converter às ironias e ao racionalismo
da língua francesa – ter conservado Dostoiévski
como uma espécie de bússola de seu ceticismo revela um
pouco das ambigüidades que até hoje cercam a recepção
do escritor russo.
Afinal, o criador do romance polifônico (segundo a tipologia
de Bakhtin) foi, além de um revolucionário da forma,
um ideólogo e moralista que passou do socialismo utópico
para o ultranacionalismo, um militante político que, após a
condenação à morte por conspiração e os serviços forçados
na Sibéria, tornou-se devoto do czar e de uma Igreja destinada
a converter-se em Estado e a liderar a missão regeneradora
do povo russo sobre terra.
O credo de Dostoiévski soa exótico como a cúpula das
catedrais bizantinas, mas preserva sua força messiânica
para além dos dogmas do cristianismo ortodoxo ou das proclamações
do movimento eslavófilo. O inventor de Mychkin
(O Idiota) e Stavróguin (Os Demônios) fala sempre de um
além que, não deixando de ser religioso, é sobretudo um
mais-além do homem. Foi isso que seduziu pensadores
ateus como Lukács, Sartre, Camus ou Cioran. E é esse caráter
messiânico que confere singularidade a seus romances e
profundidade inaudita a suas personagens – perto das quais as personagens da literatura pregressa parecem sempre um
pouco estereotipadas ou superficiais.
Como, porém, contemplar o caráter visionário de Dostoiévski
sem pôr a perder o fato de que ele é acima de tudo
um escritor – talvez o maior de todos – e, ao mesmo tempo,
como descrever a força inexaurível de sua ficção sem ignorar
que ela ultrapassa o âmbito da invenção artística?
É essa tarefa que Joseph Frank assume no último volume
do empreendimento sem precedentes representado pelos
cinco tomos de sua biografia do escritor russo. Com Dostoiévski:
O Manto do Profeta (1871-1881) completa-se um ciclo
que se iniciou nos EUA em 1976 (ano de publicação do
primeiro volume pela Princeton University Press) e teve sua
contrapartida brasileira inaugurada pela Edusp em 1999,
quando aqui saiu em português Dostoiévski: As Sementes
da Revolta (1821-1849). Seguiram-se Dostoiévski: Os Anos
de Provação (1850-1859), Dostoiévski: Os Efeitos da Libertação
(1860-1865) e Dostoiévski: O Anos Milagrosos (1865-1871)
– fruto de um trabalho de pesquisas e de um mergulho no
universo cultural russo que começou muito antes e que renderia
ainda o volume Pelo Prisma Russo – Ensaios sobre Literatura
e Cultura, lançado pela Edusp em 1992.
Comentando o caráter monumental de sua biografia,
Frank escreve no prefácio desse quinto volume:
“Em colóquio realizado, em 1989, na Stanford University,
dedicado aos trabalhos de Ian Watt e aos meus, alguém
me perguntou se era realmente essencial devotar tantos volumes
a um único autor (na época, já tinham sido publicados
três tomos dessa série). Segundo me lembro, respondi
que, se eu estivesse tratando do autor apenas enquanto indivíduo,
talvez não fossem precisos tantos volumes; mas,
como estava escrevendo igualmente uma história condensada
da cultura russa do século XIX, cujo centro era ocupado
por Dostoiévski, achava minha ‘prolixidade’ plenamente
justificada. Na verdade, esse autor enfocara em seus romances
todos os problemas dessa cultura – não no nível em
que seus contemporâneos os analisaram usualmente, mas
transformando-os com base em sua própria visão escatológica
e messiânica. E a reação enlevada que essa visão despertou
na época torna muito importante a possibilidade de
elucidá-la para nós próprios.”
Temos aqui, portanto, “a biografia de toda uma época
centrada em torno de Dostoiévski”, conforme definiu João
Alexandre Barbosa ao comentar esse último tomo no ensaio
“Dostoiévski sob o Manto do Profeta” (Mistérios do Dicionário,
Ateliê). E uma centralidade que não pode ser atribuída
exclusivamente a sua obra de ficcionista – daí o subtítulo
provocador do volume que encerra a biografia.
Professor de literatura comparada e eslava das universidades
de Princeton e Stanford, Joseph Frank é um crítico
insuspeito de simpatias por interpretações extra-literárias
do fenômeno estético. Formado na escola norte-americana
do close reading, da leitura cerrada dos elementos poéticos,
tornou-se reconhecido como teórico ao publicar, em 1945,
o ensaio “Spatial Form in Modern Literature” – posteriormente
republicado em The Idea of Spatial Form, ao lado de
textos que desdobram o conceito e respondem a algumas
restrições feitas a sua aplicação de categorias formalistas de
análise da poesia à estrutura narrativa da prosa.
Se o rigor textual de Frank é um traço de seu percurso,
não o impede de enxergar na obra de um autor como Dostoiévski
conteúdos que só podem ser amplamente compreendidos
em seu contexto de origem. Vem daí a ambivalência
do título e da própria metodologia de Frank. O mesmo crítico que afirma que, se quisermos fazer justiça ao romancista,
devemos esquecer as questões ideológicas e os problemas
sociopolíticos em que estão envolvidas suas principais
personagens, não hesita em afirmar que o enfoque desse
último volume é a transformação do artista Dostoiévski
em homem público:
“Os últimos dez anos da vida de Dostoiévski, tema deste
volume, marcam o término de extraordinária carreira literária
e de uma vida que se elevou às alturas e desceu às profundezas
da sociedade russa. No curso desses anos, muitos
– mesmo aqueles que discordavam dele (e às vezes de forma
bastante violenta) – encaravam Dostoiévski nas questões
sociopolíticas com uma certa reverência e viam em
suas palavras uma visão profética que iluminava a Rússia e
seu destino. Quando, nas sessões de leitura – de que participava
com freqüência – lia um de seus poemas prediletos,
‘O Profeta’, obra poderosamente evocativa de Púchkin, seus
ouvintes hipnotizados sentiam que ele mesmo estava assumindo
o papel. Atingiu uma estatura inaudita, fato que surpreendeu
até mesmo seus amigos e admiradores, e superou
todos os limites pessoais e políticos. Aos olhos da grande
maioria do público letrado, converteu-se num símbolo vivo
de todo o sofrimento que a história impusera ao povo russo,
e de todo o anseio deste povo por um mundo ideal de amor
e harmonia fraternos (cristãos).”
Comparado aos quatro volumes anteriores, este quinto
tomo tem uma quantidade muito menor de acontecimentos
dramáticos, além de compreender um período em que
a produção dostoievskiana encontra-se focada em poucas
obras. Não permite, portanto, a variedade interpretativa que
os leitores haviam encontrado, por exemplo, em Os Anos
Milagrosos – que compreendia a fase de redação de Crime
e Castigo, O Idiota e Os Demônios. Ainda assim, trata-se do
tomo mais extenso – e isso, certamente, porque foi nessa última
década de vida que Dostoiévski excedeu o papel que
vinha desempenhando até então, fenômeno que exige o
exame detido de todas as nuances da sociedade russa.
Frank descreve o retorno de Dostoiévski da Europa
(onde passara quatro anos com a segunda mulher, Anna
Grigorievna) e sua lenta reinserção nos círculos literários,
com a criação de uma pequena editora que lhe permitiu
deixar de ser um “proletário das letras” e com uma colaboração
regular em periódicos conservadores ou populistas
como O Cidadão e Notas da Pátria (onde publicou o romance
O Adolescente).
É nesse contexto que Dostoiévski se transforma no arauto
das transformações políticas e espirituais que ele celebrou,
como se falasse diante de um espelho, no famoso discurso
em homenagem a Púchkin, em 1880, no qual o poeta
de Boris Godunov é descrito como um profeta. Obviamente,
tal consagração não cancela as contradições desse
autor que apostava na alma russa, mas que tinha de seu
povo uma imagem que beirava a repulsa: “O povo russo é
grosseiro e ignorante, devotado à escuridão e à depravação,
‘bárbaros à espera da luz’.” Da mesma maneira, o portador
das palavras do Evangelho não conseguia justificar
um anti-semitismo disseminado por seus livros e que agora,
celebridade da cena literária e política, ele discutia no
Diário de um Escritor.
Não seria exagero dizer que esse diário representa, ao
lado de Os Irmãos Karamázov, o momento em que Dostoiévski
se dissocia da imagem convencional do romancista –
tanto em termos formais quanto ideológicos.
Pois se o Diário é um conjunto rapsódico de textos ora
ficcionais, ora jornalísticos (incluindo crítica literária) e não
pode ser enquadrado num gênero – como mostra o trecho
de Frank reproduzido nesta página –, Os Irmãos Karamázov
tampouco corresponde a uma idéia tradicional de romance
que o próprio Dostoiévski já havia dissolvido nos seus “anos
milagrosos” – mas que agora levava a extremos inimagináveis,
com seu misto de trama policial, ensaio, alegoria política
e panfleto teológico.
Frank faz leituras minuciosas do Diário e do romance
no qual culmina a vida de Dostoiévski – leituras que incidem
sobre as ousadias formais de Os Irmãos Karamázov,
destrincham o subtexto das disputas teológico-políticas
que conformam o livro e dissecam ressonâncias internas
à obra dostoievskiana. Ao final, o profeta e o escritor convergem:
se não anteviu o futuro da Rússia ou da humanidade,
Dostoiévski incorporou definitivamente à literatura
a idéia de que a representação realista deve incluir um
mundo interior de premonições e um mundo exterior de
utopias, modificando o presente e a própria maneira de eternizá-lo.
Uma vida cristalizada
Leia abaixo a descrição que Joseph Frank faz do Diário de um Escritor, publicação com artigos integralmente
redigidos por Dostoiévski e publicados de modo irregular de 1873 até 1881, ano de sua morte
O Diário de um Escritor é uma mistura tão grande de
material disparatado que fica difícil dar uma noção
sofrível de seu conteúdo. As idéias propriamente ditas
do Diário já eram conhecidas desde a atividade jornalística
anterior do autor, bem como desde os vôos ideológicos de
seus romances. No entanto, receberam uma nova vida e uma
nova cor graças ao constante desfile de exemplos e ilustrações
mais recentes, extraídos de sua onívora leitura da imprensa
corrente, de seu amplo conhecimento da história e da
literatura tanto russa quanto européia e, muito freqüentemente,
dos fatos de sua própria vida. Essas revelações autobiográficas
foram, certamente, um dos principais atrativos
do Diário e contribuíram enormemente para seu encanto; os
leitores sentiam que estavam realmente sendo admitidos na
intimidade de um de seus grandes homens. Esse constante
intercurso entre o pessoal e o público – a incessante mudança
de nível entre os problemas sociais do momento, as ‘questões
malditas’ que sempre infectaram a vida humana, e as
espiadas nos recessos da vida particular e na sensibilidade
de Dostoiévski – revelou-se uma combinação irresistível que
deu ao Diário seu cunho literário único.
Além do mais, o Diário serviu de estímulo não só para
os contos e esquetes já mencionados, mas também, como
o autor já antecipara desde o início, para o grande romance
que planejava escrever. Vez por outra aparecem motivos
que logo serão utilizados n’Os Irmãos Karamázov; e um dos
fascínios desse vasto corpus jornalístico, especialmente para
os leitores de hoje, é observar a cristalização desses motivos
à medida que emergem espontaneamente durante o tratamento
de um ou outro assunto. Mesmo que não seja literalmente
um caderno de notas, o Diário preenche essa categorização
no sentido exato da palavra. É, verdadeiramente, a
ferramenta de trabalho de um escritor nos primeiros estágios
da criação – um escritor que procura (e encontra) a inspiração
para seu trabalho, à medida que, de pena na mão,
inspeciona os fatos correntes e tenta lidar com seu sentido
mais profundo.
Extraído de Dostoiévski: O Manto do Profeta (1871-1881),
de Joseph Frank
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