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Para o antropólogo argentino, radicado
no México, Néstor García Canclini, “a
indagação sobre os sujeitos capazes
de transformar a atual estruturação
globalizada nos levará a atentar aos
novos espaços de intermediação
cultural e sociopolítica”. Autor de
livros de grande circulação no Brasil,
Canclini fala nesta entrevista exclusiva
sobre alguns de seus principais
conceitos, como hibridação e
mobilidade identitária.
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Culturas Híbridas: Estratégias para
Entrar e Sair da Modernidade
Tradução de Ana Regina Lessa, Heloísa Pezza Cintrão
e Gênese Andrade Edusp – 416 págs. – R$ 62
A Globalização Imaginada
Tradução de Sérgio Molina Editora Iluminuras – 223 págs. – R$ 40
Consumidores e Cidadãos
Tradução de Maurício Santana Dias Editora UFRJ
227 págs. – R$ 32
Diferentes, desiguais e desconectados
Nestor García Canclini Tradução de Luiz Sérgio Henriques Editora UFRJ
283 págs. – R$ 38
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CADERNO DE LEITURA: Em uma recente entrevista
(2005) à Revista de Occidente, de Madrid,
você propõe o termo interculturalidade para
definir as relações entre imaginários e identidades
na América Latina. Em que ele se diferencia do
conceito de hibridação?
NÉSTOR GARCÍA CANCLINI: Hibridação designa um conjunto
de processos de intercâmbios e mesclas de culturas,
ou entre formas culturais. Pode incluir a mestiçagem – racial
ou étnica –, o sincretismo religioso e outras formas de
fusão de culturas, como a fusão musical. Historicamente,
sempre ocorreu hibridação, na medida em que há contato
entre culturas e uma toma emprestados elementos das outras.
No mundo contemporâneo, o incremento de viagens,
de relações entre as culturas e as indústrias audiovisuais, as
migrações e outros processos fomentam o maior acesso de
certas culturas aos repertórios de outras. Em muitos casos
essa relação não é só de enriquecimento, ou de apropriação
pacífica, mas conflitiva. Fala-se muito, nos último anos, de
“choque” entre as culturas. Em todo esse contexto vemos
que os processos de hibridação são uma das modalidades
de interculturalidade, mas a noção de interculturalidade é
mais abrangente, inclui outras relações entre as culturas, intercâmbios
às vezes conflitivos.
CL: Como diferenciar o consumo de
cultura, no mundo globalizado, dos interesses de mercado?
Há como distinguir o objeto artístico da noção de
marca, com suas características mercadológicas estritas?
CANCLINI: O consumo de qualquer produto,
e também o de bens culturais, é o momento final do
ciclo econômico, que inclui a produção e a circulação. No
campo da cultura falamos de consumo, mas também de
apropriação, para nos referirmos ao caráter ativo e a possíveis
reapropriações e modificações que o consumidor pode
fazer ao receber um programa de televisão, ler um romance,
ou relacionar-se com uma mensagem na Internet. Nesse
ciclo, sabemos que a maior parte dos bens culturais funciona
como mercadoria, portanto são objetos de operações de
venda, compra e trocas mercantis. O consumo costuma referir-
se às necessidades dos consumidores, mas igualmente
aos desejos, outros tipos de disposições dos sujeitos que
não são simplesmente necessidades. Quando nos referimos
aos objetos artísticos, falamos de um tipo de bem, ou de
mensagem, que tem uma longa história de definições ou de
redefinições. Em certa etapa da modernidade, consideravase
arte o tipo de experiência, ou de objetos, em que a forma
prevalecia sobre a função. Na atualidade, há muitas outras,
que reafirmam o prazer, o caráter transcendente da experiência,
a intensidade do que sentimos ao nos relacionarmos
com o ideal artístico. A noção de marca pode se opor, num
certo sentido, a esse tipo de experiência singular, porque
tende a agrupar os objetos artísticos ou literários em séries,
onde se perde a especificidade de cada um. Por exemplo, no
mercado literário costuma-se agrupar os romances em tendências,
como o realismo mágico, ou romances históricos,
mas entre cada um deles há diferenças que têm a ver com os
autores e com a especificidade de cada busca artística.
Caderno de Leitura: Em que medida o consumismo desenfreado
de bens culturais ainda pode ser investido de
um conteúdo político e antropológico, como o de cidadania,
tema de seu livro Consumidores e cidadãos?
CANCLINI: Não gosto da noção de consumismo,
porque costuma ser utilizada para desqualificar
a proliferação dos bens de consumo e os comportamentos
que tratam de incrementar o consumo. Em princípio o consumo
não é mal, o mal é não poder consumir. Na sociedade
contemporânea, em que se implementou a universalidade
de bens, resultam insatisfatórias as opções que em outras
épocas tiveram certo êxito, como a do consumo como um
lugar de simples satisfação de necessidades utilitárias. Em
quase todo tipo de consumo estão claramente presentes um
conjunto de dimensões estéticas, de sentidos sociais, antropológicos,
que às vezes são ocultados pela publicidade e pela
redução da diversidade de significados a uma função única.
Quanto à cidadania, efetivamente, muitas vezes ela se opõe
ao consumo, como se ser cidadão não fosse uma atividade
mais nobre que a satisfação proporcionada pelo consumo.
Ambas atividades, consumir e ser cidadão, são indispensáveis
para a sociedade, sobretudo as democráticas. Se não tivermos
consumo, não se completaria o ciclo de produção e
não poderíamos sobreviver. Vejo a função dos cidadãos nesses
processos de consumo como um conjunto de atos de responsabilidade
social através dos quais tratamos de participar
dos desenhos da produção e da circulação do consumo.
Caderno de Leitura: Você afirma que o sujeito latinoamericano
deve aprender a entrar e a sair da modernidade.
Será que conseguimos avançar nesta mobilidade
identitária tão fundamentalmente temporal?
CANCLINI: A formação da América Latina
e das nações modernas, em nosso continente, está ligada ao
caráter mundial da modernidade. O que vimos nos anos 80
e 90 do século passado é que a modernidade não é um processo
linear, mas um estágio de desenvolvimento humano
no qual se ingressa de uma vez para sempre, excluindo outras
formas de desenvolvimento. Talvez na América Latina
seja mais evidente que em outros continentes que a modernidade
se instalou com seu projeto de emancipação humana,
especialmente na apropriação da natureza, no desenvolvimento
científico, na educação generalizada, coexistindo
com formas tradicionais de origem étnica e, em muitos casos,
derivadas da pobreza e do lento desenvolvimento da sociedade.
Com o tempo, vamos concebendo a modernidade
não como um estágio homogêneo e estático, mas como um
desenvolvimento que inclui diversas modalidades de crescimento
econômico, de pluralidade cultural e com ampla diversidade.
Em meu livro Diferentes, desiguais e desconectados
(Editora da UFRJ) avancei na discussão sobre a modernidade,
expondo que as diferenças na modernidade existem
às vezes como desenvolvimentos culturais distintos, outras
vezes como resultado da desigualdade das classes, entre as
nações, entre os grupos sociais, e mais recentemente em relação
com as possibilidades de conexão e desconexão das
comunicações, ou das redes de informação, entretenimento
e participação social. A mobilidade identitária tem muito a
ver com essas diferenças, desigualdades, conexões e desconexões,
com uma combinação dessas modalidades.
Caderno de Leitura: Em palestra no Instituto Cervantes,
de São Paulo, você disse que a criação artística e literária
é um local de resistência. Qual o teor dessa resistência e
contra o quê a literatura e a arte podem resistir?
CANCLINI: Naquele encontro, falamos das
tendências dos mercados culturais a reduzir a complexidade
e a diversidade sociocultural às modulações, ou modelos,
mais exitosos de vendas e de clientelas. Este é um problema
em todos os campos da produção. Em arte e literatura
este empobrecimento dos significados e das referências é
ainda mais grave. Muitos artistas e escritores contemporâneos
aceitam estas exigências dos mercados e das editoras,
ou dos grandes produtores de bens de entretenimento, com
o propósito de vender mais e ter mais público. Mas também
encontramos artistas e escritores que se interessam mais por
uma experiência criativa, por comunicá-la e fazer partícipes
dela públicos diversos. Isso tem a ver com a polissemia dos
bens estéticos e com a oportunidade que as obras literárias
oferecem de conectar-se de modo diferente com leitores diversos.
Neste sentido, a criação artística e literária seria uma
resistência em relação àquelas tendências à homogeneização
e ao achatamento das experiências sociais e culturais.
Caderno de Leitura: Ao analisar questões complexas
como multiculturalismo, globalização e construção de
identidades, você utiliza muito o conceito de fronteiras.
Poderia explicar em que sentido esse termo nos ajudaria
a compreender a exclusão da grande maioria de cidadãos,
nos países em desenvolvimento, dos projetos neoliberais
aplicados em escala planetária? Existem situações paradoxais,
em que o desemprego acaba gerando novas formas
de trabalho.
CANCLINI: Historicamente, as fronteiras
são identificadas com os territórios étnicos ou nacionais,
tomando forma de barreiras físicas, aduanas, controles
de trânsito das pessoas ou produtos. No século XX, tudo
isso se tornou muito mais complexo, pelo aumento da circulação
de pessoas, das migrações, das viagens de turismo,
pelo crescimento da circulação de produtos, que passam de
uma nação a outra, e por vezes nem se sabe onde são produzidos,
ou são produzidos em vários lugares e se montam
em outro. Também as mensagens circulam mais livremente
desde que existem satélites, computadores, Internet, e podemos
passar com facilidade mensagens de uma nação a
outra, de uma língua a muitas outras, tornando inúteis muitas
fronteiras. O que chamamos de globalização, um conjunto
complexo de processos de interdependência que supera
o econômico, o tecnológico e o cultural, cria muito
mais que um multiculturalismo, porque a multiculturalidade
tendia a designar a coexistência de grupos diferentes em
uma mesma sociedade, às vezes numa mesma cidade. Em
escala internacional, vemos nas guerras atuais que a multiculturalidade
não é respeitada pela invasão de uma nação
por outra, que em parte implicam na derrubada de fronteiras
ou na construção de outras. Como as que existem entre
México e Estados Unidos, entre Israel e Palestina etc. Essa
proliferação de fronteiras nas sociedades contemporâneas
nem sempre é resultado de uma atitude defensiva e hostil
ao estrangeiro. Implica às vezes na dificuldade de assumir
a interculturalidade. Quer dizer, aceitar que a sociedade em
que vivemos se modifica pela presença de outros modos de vida, outras religiões, outras línguas.
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