|
|
|
|
|
|
Serviço
de
Atendimento
ao Cliente |
(11) 3091-4008
08:30 as 17:30 |
|
|
|
| |
|
|
|
Milton Santos: a lucidez militante
Tarso de Melo | | |
|
Um currículo que inclui passagens por Sorbonne,
MIT, University College de Londres, Columbia
University e pelas principais universidades
brasileiras, doutorados honoris causa em
várias instituições pelo mundo, o título de professor emérito
da USP, o Prêmio Internacional de Geografia Vautrin
Lud (cujas menções vêm sempre seguidas da lembrança
de que é “o Nobel da Geografia”), algumas centenas de livros
e artigos, muitas outras honrarias e, é claro, perseguições
(destaque-se, neste item, um exílio de 13 anos durante
o regime militar iniciado em 1964) – nada foi capaz de
aquietar o espírito do professor Milton Santos, desde seu
nascimento no sertão da Bahia, em 1926, até o final de sua
vida, aos 75 anos, quando ainda se dedicava a fazer com
que suas diversas pesquisas ganhassem um sentido político
cada vez mais participante.
É bem provável que os leitores de hoje venham a conhecer
a obra do geógrafo Milton Santos, digamos, de trás para frente.
Seduzidos pelo destaque que a militância política ganhou
em suas últimas obras, entrevistas e, agora, num documentário
(Encontro com Milton Santos, de Silvio Tendler), os leitores
chegarão a seus livros, principalmente, através de Por
uma Outra Globalização: Do Pensamento Único à Consciência
Universal, reimpresso várias vezes desde sua edição em
2000, ou de Brasil: Território e Sociedade no Início do Século
XX, sua última obra (em parceria com Maria Laura Silveira),
trabalhos que coroam e resumem um longo percurso.
Para nossa sorte, no mesmo momento em que o geógrafo
tem evidência como crítico da globalização, vem ocorrendo
a reedição pela Edusp da grande maioria de suas obras, nas
quais é possível acompanhar, por meio de uma documentação
mais extensa, como ele desenvolveu e, de certo modo,
testou as categorias com que, nos livros mais recentes, explicaria
a geografia mundial dos tempos do “pensamento único”,
distinguiria a inserção do Brasil no contexto global e colocaria
seu conhecimento a serviço da transformação social.
Nas obras ora reeditadas, sobressai a figura de um pensador
que não se esquivava diante de quaisquer das dificuldades
de seu ofício, enfrentando os desafios não apenas de
sua especialidade, mas também as implicações filosóficas,
metodológicas, econômicas, políticas, culturais etc., o que
lhe deu estatura bastante para ombrear, nos quadros da geografia,
com gigantes como Henri Lefebvre e David Harvey,
ao “presentear” o Brasil com retrato mais profundo e contundente
do que muitos daqueles feitos até então por seus
mais célebres intérpretes.
O retrato composto pelos livros de Milton Santos beneficia-
se de uma capacidade pouco freqüente: conciliar um
conhecimento igualmente profundo de sua área ao de todas
as outras áreas a que sua investigação conduzia, com o
diferencial, ainda, de que a geografia é sua área específica,
convencendo-nos da importância da perspectiva geográfica
para a compreensão da realidade social. Não é uma diferença
qualquer, porque a geografia, que em Milton Santos
é o eixo principal, sequer é chamada a participar da maior
parte das reflexões sobre a sociedade.
Nos três ensaios que formam Pensando o Espaço do Homem,
por exemplo, um dos livros que a Edusp reeditou recentemente,
o geógrafo faz convergir em menos de uma
centena de páginas (sem descuidar, contudo, das sutilezas
da análise) a multifacetada discussão sobre a reprodução
do capital, com o que desvenda a influência do movimento
das forças econômicas sobre a geografia, bem
como desta sobre aquele, no esforço de “desmistificar o
espaço” em que vivemos.
Aliás, a própria noção de “espaço” elaborada por Milton
Santos, que faria sua obra se destacar na e da geografia ao
assumir o perfil mais amplo de uma teoria crítica da sociedade,
surge de uma compreensão multidisciplinar do elemento
geográfico, que, para ele, deveria ser entendido sempre
como um “conjunto de fixos e fluxos”, onde o local e o
global se encontram por meio da intervenção do homem sobre
a natureza. Ao desenvolver e apropriar-se da técnica o
homem faz com que tempos e espaços diversos conformem
a realidade do lugar em que vive.
Em tempos de “globalitarismo”, como dizia o geógrafo,
tal perspectiva é ainda mais forte e necessária. Para Milton
Santos, “A configuração territorial, ou configuração geográfica,
tem, pois, uma existência material própria, mas sua
existência social, isto é, sua existência real, somente lhe é
dada pelo fato das relações sociais” (A Natureza do Espaço).
É na investigação do papel das relações sociais para a
configuração do território que Milton Santos, mais do que
descobrir um modo novo de ver o próprio território, revela
aspectos recônditos das relações sociais. Aí talvez esteja
sua contribuição mais importante: uma geografia verdadeiramente
humana.
O conjunto das obras de Milton Santos, com seu compromisso
inabalável de pensar o mundo com as ferramentas
da geografia e de afiar essas mesmas ferramentas ao
pensar o mundo, permite entender a forma de participação
política dos intelectuais que ele defendia como necessária:
um “pensamento de mais longo alcance e despreocupado
de aspirações de poder”. No caso dele, foram décadas dedicando
uma erudição e uma energia gigantescas a demolir –
contra todos os discursos e pagando alto preço pessoal – os
alicerces de um modo de vida insustentável.
Todavia, a reflexão tantas vezes desoladora de Milton
Santos sobre nosso presente consegue um prodígio: difundir
a esperança e até mesmo a utopia de que ainda são
possíveis um Brasil e um mundo melhores, em que se realize
uma cidadania abrangente. É para esse horizonte que
seu exemplo e seus livros apontam, de modo tão magistral
quanto incansável.
TARSO DE MELO é advogado, mestre em Filosofia e Teoria Geral do
Direito pela USP. Autor de diversos livros de poesia, sendo o mais
recente Planos de Fuga e Outros Poemas (CosacNaify, 2005).
| | |