Livro e CD de Eduardo Seincman estabelecem diálogo entre música
e literatura, a partir de textos de Jorge Luis Borges, Edgar Allan Poe
e Machado de Assis, com ilustração de Evandro Carlos Jardim. |
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Sonata do Absoluto: Trios para
Borges, Poe e Machado Eduardo Seincman
Edusp 80 págs. e CD – R$ 60 | |
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Sonata do Absoluto de Eduardo Seincman não é um
livro de literatura e poesia. Não é um CD de música
apenas, e também não é um livro de arte visual.
Podemos começar pelo que não é, e por aí começarmos
a nos aproximar dessa instigante aventura que é saborear
os textos, a música e as imagens desse livro.
Como um livro de areia nos desmanchamos sensorialmente
nesse objeto, onde o autor – Eduardo Seincman –
funciona como um editor, mas um editor sensível.
Ao colocar lado a lado – ou sobrepor – textos de Jorge Luis
Borges, Edgar Allan Poe (em tradução de Fernando Pessoa)
e Machado de Assis, gravuras de Evandro Carlos Jardim e
três composições musicais em CD, Seincman, compositor e
professor de música na USP, opera um sofisticado e saboroso
jogo de espelhos e ironias que remetem o leitor a uma experiência
intersignos estimulante.
A concepção do projeto me remeteu ao livro de Marshall
MacLuhan, O Espaço na Poesia e na Pintura Através do Ponto
de Fuga, só que neste caso não há o discurso da análise,
do crítico; cada elemento engendra uma voz crítico-criativa
no diálogo-livro. A música, por sua natureza temporal, cria o
chão a partir do qual percorremos textos e imagens. Transitar
por esses signos é o playground de Sonata do Absoluto.
A proposta de Seincman é arriscada, poderia ter um
efeito redutor, onde música e imagem ilustram o texto literário.
Ao ouvir o CD, com execução impecável dos músicos
Nahim Marun, Luis Afonso Montanha, Marcelo Jaffé e Robert
Suetholz, nota-se que a construção musical replica de
forma engenhosa a vertigem temporal-existencial do texto
borgiano, o hermetismo simbólico de “O Corvo” de Poe
e, por fim, a ironia ácida de Machado de Assis. Sendo que
para cada um desses textos a música estabelece uma relação
diferenciada.
Transitando em torno do idioma musical pós-romântico
de um Schoenberg pré-dodecafônico (compositor com forte
influência da literatura), Seincman embaralha nossa percepção
num irônico jogo de aproximação e distanciamento
– crítico, por vezes – em relação aos textos.
Esse é o ponto central, a meu ver, de Sonata do Absoluto,
a relação entre sons, palavras e imagens como um ambiente polissêmico, no qual o leitor/ouvinte é convidado a uma
imersão sem que se abandone um irônico senso crítico.
Assim a música não se converte em comentário do texto,
mas em discurso paralelo, e por vezes em metalinguagem.
As citações musicais são citações de estilos e linguagens, a
figura do compositor assume a função de organizador do
discurso, ao invés de canal de expressão de uma pessoalidade
ou de um estilo próprio.
No trio relacionado ao texto de Borges, “pantomima para
piano, clarinete e violoncelo”, elege a interrogação como figura
de expressão musical. Com uma formação brahmsiana,
composto entre 1984 e 2007, nota-se que os instrumentos
desenham formantes, motivos e impulsos rítmicos segundo
suas características, reforçando uma gestualidade
individualizada, num Andante interior.
“O tempo se deteve” reflete a personagem Hladik, que
solicitara a Deus mais tempo para conclusão de sua obra,
ele, um condenado à morte. Da mesma forma, a música detém
seus impulsos, hesita, muda de estado abruptamente,
com direito até a um tango estilizado ao final, quando concomitantemente
(essa é uma das delícias do livro, ler e ouvir
a música correspondente) a personagem realiza o seu último
e dramático acerto de contas.
O “solilóquio para piano, viola e violoncelo”, composto
entre 1990 e 2007, relacionado ao poema “O Corvo”, de Edgar
Allan Poe, como num movimento lento de sonata, assume
tons sombrios: desenvolve seu drama em forma de monólogo.
O corvo em seu refrão “nevermore” (“Nunca mais”),
“anuncia uma negação, negação de futuro, negação para
sempre”, como analisou o lingüista Roman Jakobson em estudo
sobre o som e o significado. A música se desenvolve
de forma unidirecional (mas espiralada). Viola e violoncelo
fundem sonoridades. O piano busca uma natureza timbrística mais neutra, balanceando acordes e melodias que
reverberam as linhas das cordas. Como se todos participassem
de uma mesma voz. Desta feita, a composição distancia-
se da estrutura estrófica do poema, em troca de um fluxo
contínuo, interrogativo, mas reiterativo.
A música para o texto Trio em Lá Maior de Machado de
Assis, “farsa para piano, clarinete e viola”, um Scherzo inquietante,
foi composta entre 2003 e 2007. Parte da própria
estrutura musical do texto, um saboroso não consumado
triângulo amoroso – dividido em três partes: I. Adágio Cantabile,
II. Allegro ma no Troppo e III. Allegro Appassionato. A
narrativa é permeada por uma sonata ao piano (“lá, lá, lá”...),
tocada pela donzela indecisa e ironicamente chamada de
“sonata do absoluto”.
Desta feita, a música se transforma em comentário das
sutilezas e ironias machadianas. Converte-se em trilha sonora
do texto, no entanto, sem reducionismo ou obviedades.
Para tanto, Seincman recorre a citações de outros compositores
como Villa-Lobos, Mozart, o “Hino Nacional Brasileiro”
e até a música tema do filme “Romeu & Julieta” de
Zefirelli. Agrega ainda a sua escrita fluída, músicas que funcionam
como moldura histórica do começo do século 20 no
Rio de Janeiro. Como contraponto, uma construída austeridade
e seriedade “erudita e romântica” complementa a estratégia
do compositor-persona, ou compositor-heterônimo.
Ou seja, a citação é da própria escrita musical, fonte de
discursos e de estilos. Através da estilização, Eduardo Seincman
fabula musicalmente. Mantem-se distante da música
de programa, ou da idéia de uma trilha sonora ilustrativa,
na medida em que se assume como um colocador (com-positor)
de idéias musicais (em sintonia com a metafísica textual
de Borges), promovendo um dialogo da escrita musical
consigo mesma, sua história, seus estilemas.
Por fim, Sonata do Absoluto é mais do que um livro. É
uma aventura saborosa para mergulhadores e equilibristas
por textos, imagens e sons.
Livio Tragtenberg é compositor e diretor musical da Orquestra
de Músicos das Ruas de São Paulo. Autor de Música de Cena (Perspectiva)
e Contraponto (Edusp).
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