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“Língua geral” é uma expressão utilizada para
denominar as línguas de origem indígena
que surgiram em algumas províncias do
Brasil, entre os séculos XVI e XVII, a partir
do contato entre tupi-guaranis, europeus e africanos. Mais
especificamente, trata-se de uma variante lingüística que,
tendo como origem o tupi (em São Paulo) e o tupinambá
ou nheengatu (na região amazônica), tornou-se patrimônio
de um grupo mais miscigenado, “língua franca” compartilhada
por diversas etnias.
Por definição, a língua geral implicava formas relativamente
intensas de contato intercultural (mesmo que fosse
o contato belicoso dos bandeirantes, que falavam a “língua
geral paulista”). O que, por outro lado, explica a razão pela
qual não surgiram fenômenos semelhantes nas regiões em
que as populações indígenas foram dizimadas ou mantidas
à margem do sistema administrativo colonial português
(como na faixa costeira que vai de Pernambuco e Bahia até
Rio de Janeiro).
Essa breve explicação lingüística é uma maneira de traduzir
o espírito que guiou a criação da editora Língua Geral,
uma iniciativa do escritor angolano José Eduardo Agualusa,
da produtora cultural portuguesa Conceição Lopes e da
empresária brasileira Fátima Otero.
Hoje, num contexto pós-colonial e globalizado, a expressão
que dá nome à empreitada editorial não designa mais a
fala comum surgida de uma fronteira lingüística, mas a literatura
produzida na mesma língua de um mundo sem fronteiras.
A vocação da Língua Geral, portanto, é celebrar e divulgar
a lusofonia, captar o diapasão no qual vibra a literatura
de países como Angola, Brasil, Cabo Verde, Moçambique
e Portugal.
Esse traço está presente em todas as coleções da editora,
a começar pelo selo “Mamã África”, dedicada a relatos
da tradição oral daquele continente, recontados no formato
infanto-juvenil por autores como o poeta angolano
Zetho Cunha Gonçalves (Debaixo do Arco-Íris Não Passa
Ninguém, ilustrações de Roberto Chichorro), o romancista
moçambicano Mia Couto (O Beijo da Palavrinha, ilustrado
por Malangatana, também de Moçambique) e o próprio
Agualusa (O Filho do Vento, com o artista plástico angolano
António Ole).
A esse viés mais tradicional se alternam coleções que
procuram flagrar tendências contemporâneas: “Ponta-de-
Lança” (dedicada à prosa) e “Língua Real” (à poesia). A simples
relação dos títulos publicados mostra como os editores
têm procurado mesclar autores já reconhecidos como novas vozes lusófonas e escritores que representam apostas
literárias.
O selo “Ponta-de-Lança”, por exemplo, inclui título como
Ódio Sustenido, com 13 contos de Nelson de Oliveira, e A
Luz do Índico, de Francisco José Viegas. O primeiro é nome
familiar para quem acompanha a literatura brasileira atual,
tendo sido o responsável pela organização de duas antologias
(para a editora Boitempo) que criaram a expressão
“Geração 90” para definir a prosa urbana dos últimos anos.
Viegas, por sua vez, talvez não ainda seja um escritor tão
conhecido no Brasil como romancista, mas basta dizer que
também é publicado pela editora Record (maior grupo do
país), sendo um dos jornalistas culturais mais importantes
de Portugal.
Ao lado desses nomes, aparecem novos escritores como
Christiane Tassis (Sobre a Neblina, livro realizado graças à
Bolsa Flip de Criação Literária) e Ana Paula Maia (A Guerra
dos Bastardos), ambas do Rio de Janeiro.
No caso da poesia, a coleção “Língua Real” foi inaugurada
com um livro ousado: Laranja Seleta, de Nicolas Behr,
poeta radicado em Brasília que surgiu na onda contracultural
dos anos 70 e vinha se mantendo à margem do sistema
editorial. O volume inclui poemas de seus “livros” anteriores
(na verdade, coletâneas mimeografadas) e vários inéditos,
indicando assim a proposta de lançar a produção recente
e, ao mesmo tempo, resgatar autores apartados (ou
ignorados) pelos circuitos oficiais.
O fato de Behr, poeta irônico, refratário às engrenagens
da indústria editorial, ter decidido publicar agora pela Língua
Geral é um indício do modo singular como a editora
vem se inserindo num meio em geral resistente ao contato
com a literatura dos outros países lusófonos.
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