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Quando se menciona o autor da Formação da
Literatura Brasileira, tanto a clareza meridiana
da trajetória intelectual, dedicada a temas
decisivos à compreensão do Brasil, tais como
o jogo entre o local e o cosmopolita no campo das idéias,
entre a ordem e a desordem na vida nacional, quanto a
convicção democrática e igualitária inflexíveis do militante
convidam a uma adesão fascinada, completa.
Admiração incondicional, totalmente rendida, talvez
não faça justiça à obra do mestre, perpassada de lado a outro
pelo que Paulo Eduardo Arantes batizou de “sentimento
da dialética” – sensibilidade aguda às contradições atada
ao empenho em organizá-las. Certamente desrespeita seu jeito
pouco à vontade com o formalismo das demonstrações públicas
de reverência. Mas é difícil fugir delas, quando parecem
apenas reverberar testemunhos e impressões unânimes
de gente muito diversa que cruzou seu caminho e não
apenas de amigos, discípulos, leitores.
A simpatia humana e curiosidade intelectual do ensaísta
remontam aos anos de infância mineira do filho, carioca, do
médico Aristides de Mello e Souza. Devem muito à sociabilidade
da província sofisticada, peculiar a cidades típicas da
região da Mogiana, como Poços de Caldas e Cássia, em que
as bibliotecas rivalizavam com os bailes.
Ter optado pelos estudos em São Paulo, nas primeiras
turmas da recém-criada Faculdade de Filosofia, Ciência e
Letras, foi determinante. Levou ao encontro simultâneo da
sociologia e da literatura que, cindida entre o texto e a vida,
permitiu a articulação das preocupações estéticas e políticas,
teóricas e práticas. Da sociologia, permaneceu no estudioso
de literatura um profundo respeito pelo objeto. A forma
ensaística e um ecletismo teórico responsável (que deve
muito à estilística, ao new criticism e a um marxismo longe
do reducionismo) permitiram a Antonio Candido desenvolver
um projeto crítico que desenovela o social a partir de
uma análise imanente da obra de arte.
Método e opção pessoal, a primazia do objeto implicou
num apreço maior pelo processo, em detrimento do pontual, pela apreensão da forma orgânica e viva contra a dissecação
anatômica. Ela se espelha em procedimentos estilísticos
incorporados à maneira de uma segunda natureza pelo
ensaísta, como o ritmo de viagem ditado pelas digressões, o
gosto pelas paráfrases interpretativas, as citações embaladas
pelos torneios do próprio texto.
Nos anos de juventude, a aproximação dos modernistas
paulistas, Mário de Andrade à frente, o contato com os professores
da missão francesa fundadora da USP, o duplo compromisso
com a teoria e a militância intelectual, culminaram
na fundação da revista Clima, de cuja vida breve – dezesseis
números dispersos em quatro anos em meio a uma
guerra mundial e uma ditadura doméstica – se desprenderam
algumas das maiores e mais influentes vocações críticas
da cultura e das artes brasileiras no século 20.
O grupo reunia alunos promissores e depois professores
fundamentais da jovem Universidade de São Paulo: além do
próprio Antonio Candido, seus amigos e cúmplices, Décio
de Almeida Prado, Paulo Emílio Salles Gomes, Lourival Gomes
Machado, Ruy Coelho e Gilda de Mello e Souza, sua futura
esposa. Os frutos da revista não se restringiram aos círculos
acadêmicos, onde seus criadores foram responsáveis
pela formação de quadros e condições mínimas para uma
pesquisa séria e sistemática nas humanidades, tendo se espraiado
nas mais diversas frentes institucionais. Dela brotaram
cineclubes, germe da Cinemateca Brasileira, a Escola
de Arte Dramática, o Suplemento Literário d’O Estado de S.
Paulo, que marcou época em fins dos anos 50, uma militância
crítica na imprensa e as diretrizes iniciais do Museu de
Arte Moderna (MAM).
Tanto quando definia, no calor da hora, a importância
do escritor novo (nos rodapés que assinou na Folha da Manhã
e no Diário de São Paulo, ou no Suplemento Literário),
como quando exercia sua vocação comparatista ou reconstruía
os conflitos essenciais por trás dos momentos decisivos
da formação da literatura brasileira, Antonio Candido
sempre teve em seu horizonte a intervenção na vida política
e cultural do país. A militância no Partido Socialista Brasileiro
reponta depois na participação destacada na fundação
do Partido dos Trabalhadores, os protestos contra o obscurantismo
ditatorial do Estado Novo ecoam na resistência
ativa ao regime militar pós-64.
“É difícil encontrar um homem bom”, reza o título de um
conto de Flannery O’Connor, escritora americana, sulista,
cujo talento ficou eclipsado pela grandeza de seu contemporâneo,
William Faulkner. Nem tanto, secundariam os
que, nos últimos noventa anos, tiveram o privilégio da convivência,
direta ou indireta, ocasional ou prolongada, com a
obra e a pessoa de Antonio Candido.
Fábio de Souza Andrade é professor de Teoria Literária na Universidade
de São Paulo, tradutor e colunista da Folha de S. Paulo,
autor de O Engenheiro Noturno (Edusp, 1997) e Samuel Beckett: o
Silêncio Possível (Edusp, 2001).
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