Futuro Passado reúne ensaios de Reinhardt
Koselleck, um dos mais importantes
historiadores alemães do pós-guerra,
fundador e principal teórico da vertente
denominada “história dos conceitos” |
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Futuro Passado: Contribuição à Semântica
dos Tempos Históricos
Reinhart Koselleck
Tradução de Wilma Patrícia Mass e
Carlos Almeida Pereira
Editoras Contraponto/PUC-RJ – 368 págs. – R$ 48.00
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Lançado originalmente em 1979, Futuro Passado.
Contribuição à Semântica dos Tempos Históricos
reúne 14 ensaios publicados em meados dos anos
60 e início dos 70 por um dos mais importantes
historiadores alemães do pós-guerra, Reinhardt Koselleck
(1923-2006). Ao longo de sua trajetória acadêmica, ele lecionou
nas universidades de Bochum, Heidelberg e Bielefeld,
destacando-se como um dos fundadores e o principal
teórico de uma vertente historiográfica denominada de
“história dos conceitos” (Begriffsgeschichte).
Convém sublinhar que se a “história das idéias” já havia
assinalado a importância da linguagem para a compreensão
do universo simbólico, a operação encabeçada por Koselleck
critica e propõe um afastamento da “história dos
conceitos” daqueles marcos forjados pela velha tradição. A
distinção entre estas duas vertentes historiográficas repousa,
em última instância, no modo de conceber a temporalidade
das formações intelectuais. De certo, a história das
idéias não desconhecia o fato de que as categorias ou idéias
variavam o seu significado em função do seu contexto de
enunciação. Mas ao se restringir à referencialidade, ela favorecia
a construção de narrativas históricas fundadas em
identidades puramente nominais, isto é, baseadas na mera
recorrência terminológica, por exemplo, a história da idéia
de democracia desde os gregos até o presente.
Com imensa erudição e a leitura meticulosa de um corpus
documental amplo e diverso, ele transita por textos de
natureza política, filosófica e teológica, bem como poemas,
provérbios, dicionários, quadros renascentistas e relatos
oníricos de pessoas ordinárias que viveram na época do iii
Reich. É com base nestes textos que Koselleck tece considerações
sobre o tempo histórico, sobre a confrontação entre
passado e futuro, entre a experiência e a expectativa. Se
fosse possível encontrar uma fórmula que condense o objeto
deste conjunto de ensaios, não seria equivocado afirmar
que eles convergem para uma reflexão acerca dos usos públicos
e políticos da linguagem.
O livro é organizado em três partes que conferem uma
inequívoca coesão temática. Na primeira delas, “Sobre a relação
entre passado e futuro na história moderna”, enfatizase
a longevidade e a dissolução da fórmula historia magistra vitae cunhada por Cícero, sua apropriação por historiadores
ligados à tradição cristã e também por distintos representantes
e defensores de uma história profana de extração
humanista. Neste caso, o argumento central de Koselleck
é que o surgimento do conceito moderno de história,
para ele a mais importante inovação conceitual da modernidade,
implicou numa nova relação entre passado e futuro,
como também pela ascensão de um novo léxico. Até meados
do século XVIII, o termo história (em alemão, Historie)
era sempre usado no plural para designar narrativas particulares,
como a história da Guerra do Peloponeso, a história
de Florença, a história da Igreja. A função dessas narrativas
era prover exemplos de vida a serem seguidos. O Iluminismo
altera essa relação do homem com o tempo. No lugar da
Historie, entra a Geschichte, termo da língua alemã que designa
uma seqüência unificada de evento que, vistos como
um todo, constituem a marcha da humanidade.
A segunda parte é intitulada “Sobre a teoria e o método
da determinação do tempo histórico” e pode ser lida como
um convite à reflexão sobre os procedimentos metodológicos
da história conceitual. Postulando uma autonomia da
história conceitual em relação à história social, Koselleck
reivindica “a premissa teórica da obrigatoriedade de confrontar
e medir permanência e alteração” que incidem na
linguagem empregada para construção dos relatos das experiências
passadas, assim como na capacidade de resistência
das teorias do passado. Ainda nesta parte, podemos
acompanhar mais detidamente a argumentação que sublinha
a singularidade do tempo histórico, distinto de um tempo
natural e mensurável. De acordo com estes pressupostos,
ele indica que o tempo histórico está associado à ação
política e social, a homens concretos que agem e sofrem as
conseqüências de ações, a suas instituições e organizações.
Assim, de maneira distinta do tempo natural e de sua sucessão,
mas relacionado ainda com a cronologia, os tempos
históricos estão irremediavelmente articulados com a experiência,
isto é, com as condições intersubjetivas da ação.
Por fim, na terceira parte, “Sobre a semântica histórica
da experiência”, o autor examina aquilo que ele designou
de “conceitos antitéticos assimétricos”, isto é, aqueles pares
de conceitos binários que têm pretensões universais (por
exemplo, helenos e bárbaros, cristãos e pagãos), e também
uma série de conceitos que expressam distintos níveis da experiência
temporal, tais como “história”, “modernidade”, “revolução”,
“reação”, “democracia”. A formulação e o emprego
destes conceitos são indicadores da mudança e dos fatores
constitutivos da nossa consciência com a qual outorgamos à
linguagem uma dupla função de expressão e fundação.
Longe de reduzir a história à sua articulação lingüística,
Koselleck sustenta que existe uma tensão aí, tal qual aquela
decorrente da compreensão do passado no presente. Daí
ele sublinhar que “existem diferentes extratos das experiências,
já adquiridas ou que podem ser vividas, do que é ou
pode ser lembrado, enfim do que foi esquecido ou jamais
transmitido, aos quais recorremos e que são organizados a
partir de perguntas atuais. Que se considerem fatores lingüísticos
ou extra-lingüísticos é decisivo para forma de reproduzir
a história passada. Já por causa da escolha prévia,
nenhum relato de coisas passadas pode incluir tudo o que
existiu ou ocorreu. Dito em termos mais genéricos: linguagem
e história permanecem dependentes uma da outra,
mas nunca chegam a coincidir plenamente”.
Embora seu projeto historiográfico possa ser objeto de
críticas e objeções, os textos de Koselleck proporcionam
uma série de iluminações acerca da historicidade da linguagem
empregada pelos historiadores, sublinhando o impacto
que as distintas concepções de tempo tiveram sobre
as mais diversas formas de organização social. Após a leitura
de Futuro Passado, dificilmente será possível sustentar
uma visão ingênua da linguagem concebida como um meio
mais ou menos neutro para transmitir idéias ou para representar
realidades externas a ela.
Nelson Schapochnik é historiador e professor da Faculdade de
Educação da usp, organizador de João do Rio: Um Dândi na Cafelândia
(Boitempo), Cultura Letrada no Brasil: Objetos e Práticas
(Mercado de Letras) e A Hora Futurista que Passou e Outros Escritos(Boitempo)
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