Em dois livros demolidores,
o crítico italiano Alfonso
Berardinelli analisa os
principais dilemas da poesia
e da prosa contemporâneas,
colocando em xeque os
“mitos da modernidade” e
suas teorizações |
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Da Poesia à Prosa de Alfonso Berardinelli
Org. de Maria Betânia Amoroso
Tradução de Maurício Santana Dias Cosac Naify 214 págs. – R$ 55 | |
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Pode parecer um diagnóstico sombrio, mas a poesia
contemporânea vive um dilema profundo,
que atinge duramente suas bases cognoscíveis,
isto é, a pertinência de seu dizer, sobre o que dizer
e para quem dizer. Refugiada no hermetismo, ensimesmada
e alheia à realidade, como um corpo estranho no
mundo sempre saturado da cultura, a poesia enfrenta com
indiferença seu leitor, cada vez mais raro, ou o força a uma
jornada insana de interpretações e superinterpretações,
beirando o vale-tudo conceitual.
Esse movimento “para dentro” teria começado com poetas
como Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé, e chegaria a seu
paroxismo com as vanguardas do início do século XX. Não
que o poeta tenha dado as costas para o mundo – o que, em
muitos casos, de fato ocorre – e se refugiado numa realidade
ideal, mas a poesia que fundamenta aquilo que entendemos
por modernidade está montada sobre regras próprias
e, como tal, exige um complexo processo de decifração, que
às vezes se vê fadado ao malogro. Fracasso de crítica ou da
poesia? Ou das duas?
Essas são algumas das questões abordadas com aguda
inteligência pelo crítico italiano Alfonso Berardinelli no
provocador livro Da Poesia à Prosa, organizado por Maria
Betânia Amoroso, professora de teoria literária da Unicamp.
A crítica de Berardinelli começa pelo questionamento de
uma definição de poesia moderna, desde uma “teologia negativa”,
com Maurice Blanchot, a uma ontologia revestida de
metodologia lingüística em Roman Jakobson, para chegar
nas mais recentes teorizações da crítica francesa, como a de
Roland Barthes e da prestigiosa revista Tel Quel, para destacar
que “quanto menos poesia e narrativa se escreviam,
mais grandiosas, sugestivas, difusas e internacionalmente
influentes se tornavam a crítica e a teoria literária produzidas
na França”.
Neste curto ensaio, que funciona como um preâmbulo
para o capítulo em que comenta o clássico estudo de Hugo
Friedrich, Estrutura da Lírica Moderna, publicado em 1956
– e cuja tradução brasileira, de 1978, permanece esgotada
desde a segunda edição de 1991 –, Berardinelli aponta que a
reflexão sobre a literatura ocupa um espaço tão importante
quanto o objeto mesmo de estudo, rivalizando com ele, ou
talvez disputando a explicação de um vazio, de uma falta
de sentido histórico, de comunicação com o mundo, de representação
da realidade, que são os fundamentos de toda
criação literária. Podemos inferir daí, e dos ensaios subseqüentes
no livro, o fascínio pelo ensaio e a primazia da teoria
sobre os artefatos literários que são muito comuns hoje,
no rarefeito mercado da cultura, e têm seu habitat consolidado
no meio acadêmico.
Essa mesma queixa está muito bem desenvolvida no livro
A Função da Crítica, do crítico marxista Terry Eagleton
(Martins Fontes, 1991). Para Eagleton, a crítica hoje perdeu
toda relevância social e se reduziu à mera divulgação da indústria
literária, ou se confinou às academias, como assunto
interno. Sua intervenção na sociedade, como formadora
de opinião ou geradora de conflitos de idéias, se perdeu
num emaranhado de discursos e se distanciou de seus interlocutores
na sociedade.
A partir de Friedrich, entretanto, Berardinelli discute o
papel das vanguardas na transformação da literatura em
ação programática, agudizando a relação da poesia com o
público, já fustigado pela obscuridade e pelo distanciamento
das intenções do poeta em relação à realidade, também
em mudança seja na ascensão da burguesia, na modernização
urbana, ou na conflagração de uma guerra de dimensões
internacionais.
A história se fragmenta, o sujeito se pulveriza e a poesia
cria seu “antimundo”. Não um mundo perfeito, à parte, ideal,
hegeliano, mas um mundo fechado e coeso, que se autoexplica,
como o livro hipotético – e irrealizável – de Mallarmé.
O livro como metáfora do mundo. Ou nas palavras do
crítico: “A língua da poesia se especializa. (...) Funciona
como uma máquina, procedendo a uma meticulosa abrasão
de todo conceito, imagem e valor herdados.”
Friedrich fala em “transcendência vazia” e “agressividade
dramática” para definir a agonia da lírica contemporânea,
mas Berardinelli enxerga aí, justamente, o ponto nevrálgico
desse projeto estético frágil e questionável, em virtude
da perda de sua “carga dialética”. Ao contrário de qualquer
transcendência que se possa extrair das ruínas da tradição, Berardinelli falará no “kitsch da modernidade” ao se referir
ao vazio da abstração, ou à abstração como valor em si mesma,
definindo a formulação desse kitsch como resultado de
“procedimentos de fragmentação, de fetichismo formal, de
abstração estrutural, de assintaticismo, de colagem, de recusa
à comunicação e à referencialidade”.
O tiro parece certeiro numa ordem de convenções que se
tornou clichê entre poetas contemporâneos. O pastiche de
estilos e de vozes, o minimalismo, as citações desconexas,
as referências arbitrárias, o desprezo pelo sentido, a confusão
de linguagens que redundaria, na opinião do crítico
e tradutor português João Barrento, em “pura caoticidade”.
Afinal, ainda segundo Barrento, “a escrita transformou-se
na imagem agressiva da poluição visual”. A performance se
sobrepõe a qualquer construção de sentido.
O duro ataque de Berardinelli à estrutura oca de certa lírica
consagrada no século XX não implica uma rejeição in
totum da poesia contemporânea, mas, ao contrário, sinaliza
para a exigência de que a literatura possa, com seus recursos
históricos e estéticos, representar de algum modo a
realidade de que faz parte, conquistando seu enraizamento,
ao contrário de uma “depuração anticomunicativa”, ou
da obscuridade explícita. Nesse momento de perda do contato
com o sentido histórico da representação, ainda que
se pudesse considerá-lo de maneira crítica – contra a “reificação
do mundo” e o “domínio da mercadoria sobre o homem”,
conforme Adorno –, “o ato poético passa a ser culto e
apologia de si mesmo”, nas palavras de Berardinelli. O que
fazer quando o discurso poético vira jargão e, como tal, se
torna passível de reprodução acrítica, um tipo de peça decorativa?
Seriam a afasia e o silêncio as marcas de fundo
dessa poética?
O questionamento de Berardinelli vai adiante, esmiuçando
contradições nas obras de grandes nomes da modernidade,
como Paul Valéry e Gottfried Benn, ou como
Pound, Eliot e Ungaretti, para discutir o conflito entre provincianismo
e cosmopolitismo, e demonstrar que se pode
valorizar – como no caso da poesia italiana – o “universalismo
espontâneo” dos autores provincianos, mais que “o provincianismo
moderno dos nossos cosmopolitas”. Ou, então,
na definição dos quatro tipos de obscuridade que assolam
a lírica moderna: solidão e singularidade; profundidade e
mistério; provocação; jargão. Essa arte poética, na visão demolidora
de Berardinelli, “tende a se tornar uma arte sem
leitores, uma arte literária apenas para escritores”.
Com meticulosa erudição, o crítico vai desmontando
as grandes pretensões da modernidade em sua auto-suficiência,
em seu auto-centramento, seja nos pressupostos
dos movimentos de vanguarda – como o surrealismo – ou
no experimentalismo com a linguagem, como se a experimentação
em si mesma justificasse a pertinência do poético,
sem o contraponto tenso do diálogo com o entorno, ou
seja, com o real. A experiência, nesta perspectiva, se torna
supérflua, vazia, ou talvez um mero subterfúgio para qualquer
registro. Segundo Berardinelli, “o pressuposto da assim
chamada lírica moderna posterior a Baudelaire é a desagregação
da noção de sujeito e a indeterminação da categoria
de experiência”.
Interessante citar novamente o crítico João Barrento, que no pequeno e instigante livro O Espinho de Sócrates: Expressionismo
e Modernismo (Editorial Presença, ?987), afirma
que “não será talvez exagerado afirmar que existe, nos
primeiros românticos como nos modernismos deste século,
um delírio (do) cerebral, uma ‘erótica teórica’, e que esse cerebralismo,
essa obsessão da consciência de si, são uma espécie
de onanismo que leva, nos casos mais conseguidos e
extremos (Pessoa ou Carl Einstein), a um autêntico orgasmo
mental, a um clímax da sublimidade na sublimação”. Os riscos
desse processo de ensimesmamento intelectual, entranhado
na poesia e na prosa contemporâneas, estão bastante
presentes hoje e a leitura dos ensaios de Berardinelli possivelmente
nos ajude a lidar com eles de um modo mais conseqüente
e, quem sabe, com algum distanciamento crítico.
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