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Não Incentivem o Romance e Outros Ensaios Alfonso Berardinelli
Alfonso Berardinelli Humanitas/Nova Alexandria 208 págs. – R$ 32 | |
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A catilinária de Alfonso Berardinelli contra o jargão do
hermetismo – catilinária que atravessa todos os ensaios
do volume Da Poesia à Prosa – faz parte de um
diagnóstico mais amplo, que atinge igualmente a prosa (em
especial o romance) e o ensaio (gênero que o crítico não hesita
em colocar lado a lado com as demais modalidades de arte
verbal). É esta a tônica dos textos reunidos em Não Incentivem
o Romance e Outros Ensaios, livro organizado por Lucia
Wataghin que inaugura a coleção Estudos Italianos (co-edição
da Nova Alexandria e da Humanitas).
Como o título indica, Berardinelli dirige seu fogo contra o
romance – ou, melhor dizendo, contra sua galopante anemia:
ele retoma o tema desgastado da “morte do romance” para,
numa torção conceitual, mostrar como existe hoje uma epidemia
romanesca que, essa sim, é tão letal contra a dissolução
propugnada pelo nouveau roman nos anos 60.
“Foi-se o tempo em que se falava com desenvoltura sádica
da morte do romance”, escreve Berardinelli para, seguindo
as pegadas do crítico (e romancista) israelense Abraham
Yehoshua, afirmar: “Segundo a tese de Abraham Yehoshua,
o romance – a forma literária mais moderna e democrática
– estaria sendo dificultado, se não morto, pela democracia
moderna. Quanto mais a democracia se fortalece e dissemina,
mais o romance perde sua incisividade e sua autoridade
artística, sua capacidade, ainda viva nas décadas de 1920 e
1930, de marcar a fundo a consciência cultural de intelectuais,
escritores e leitores comuns.”
Evidentemente, Berardinelli não lamenta a democracia
em si, mas seu efeito narcótico – mesmo por que as democracias
hoje vigentes, que equivalem ao acesso a bens de
consumo, transformou a narrativa em mais um item na prateleira.
Nos anos 60, o romance perdera a função, conquistada
ao longo da ascensão da burguesia, de termômetro da
sociedade e afresco de suas transformações, cedendo lugar
a disciplinas como sociologia e psicanálise. “O conhecimento
tinha outras fontes. Já se sabia como era a vida dos indivíduos,
qual era o peso da estrutura social, como funcionava
a vida diária. (...) O romance evitava a Totalidade representativa,
esquematicamente atribuída ao romance do século XIX
(sem considerar que nem sequer Guerra e Paz é um romance
‘total’: simplesmente entrelaçava diversos pontos de vista
com extrema maestria e velocidade épica). O Novo Romance
havia se especializado, setorizado. Queria ser um anti-romance,
ou seja, uma espécie de ajuste de contas entre os escritores
e a tradição.”
Poderíamos acrescentar às agudas reflexões de Berardinelli
que a homogeneidade da sociedade de massas e da indústria
cultural também cancelava o efeito de choque da cidade
moderna e de suas manifestações literárias – o que talvez
tenha contribuído para a crise da representação romanesca,
para um movimento de retração da prosa, agora confinada
num mundo interior ou com narrativas em que a armação
lingüística, a estrutura ficcional, se sobrepõe à matéria
narrada.
De todo modo, o raciocínio de Berardinelli em relação ao
romance tem paralelos com sua análise da poesia moderna.
Em Da Poesia à Prosa, ele afirmara (citando Adorno) que “a
obscuridade anti-realista da lírica é ‘uma forma de reação
à reificação do mundo, ao domínio da mercadoria sobre o
homem’”. Agora, no ensaio que dá título a Não Incentivem o
Romance, ele atribui ao romance um mesmo impulso rumo
à depuração da narrativa, à elisão das referências externas
(incluindo as referências estilístico-lingüísticas consagradas
pela tradição) e dos vestígios de uma visão socialmente
marcada. Enfim, Berardinelli vê no romance uma tendência para a realização daquilo que Barthes chamou de “grau zero
da escrita”.
Aqui, porém, começam as diferenças. A lírica prosseguiu
nesse caminho até virar clichê, porém preservando-se na esfera
fechada de uma seita (seja por cultivar o hermetismo,
seja pela pura e simples falta de leitores...). O romance, ao
contrário, por ser um gênero mais permeável aos discursos
e realidades que pululam à sua volta, acabou contrariando
a sentença de morte decretada pelos estruturalistas e ganhou
inesperada vitalidade com o boom da narrativa latino-
americana.
Berardinelli ironiza essa “segunda juventude” do romance
e a necessidade de escrever livros de ficção manifestada por
acadêmicos, jornalistas e ensaístas como Umberto Eco, George
Steiner, Tom Wolfe, Claudio Magris, Susan Sontag. Afinal,
a nova onda não seria mais do que o reverso da medalha da
“morte do romance”, convertida em euforia consumista de
leitores dos quais já não se exige “energia interpretativa” –
pois tampouco há energia narrativa.
Nesse sentido, o ensaio em questão é complementar a “O
best-seller pós-moderno: de O Gattopardo a Stephen King”,
texto no qual Berardinelli analisa a recepção de autores
como Lampedusa, Kerouac e García Márquez. Para ele o apelo
irresistível desses autores se deve à necessidade de enredos
mitologizantes, congelados no tempo inerte da aristocracia
(caso de O Gattopardo), da purificação destrutiva (a
dicção beatnik) ou do fantástico (a Macondo intemporal de
Cem Anos de Solidão).
As palavras mais cáusticas, porém, se dirigem a Umberto
Eco. Para Berardinelli, um romance como O Nome da Rosa
não passa de artefato para o “neoburguês, competente, escolarizado,
intoxicado de teorização e desejoso de promoção
cultural (...) que não quer, decerto, emocionar-se nem lamentar
os males do mundo, como aquele dos romances do século
19, mas prefere sentir-se deliciosamente distante, irônico,
sofisticado e sarcástico”.
Em todos os casos, temos a fórmula do best seller a serviço
de uma denegação da história – uma denegação simétrica
ao hermetismo poético e à morte do romance.
É importante salientar esse traço da abordagem de Berardinelli
para se compreender as três conferências que abrem
o volume. Originalmente apresentadas na Universidade Autônoma
do México como panoramas da poesia, da narrativa
e do ensaio na Itália após 1945, são textos preciosos para o
estudioso da cultura do pós-guerra, trazem escolhas não raro
idiossincráticas, mas sempre coerentes com a busca de Berardinelli
por obras não coaguladas pelas idéias prontas.
No panorama da poesia, por exemplo, a figura de Umberto
Saba destaca-se como “negação do hermetismo” e até
mesmo um Montale (considerado a quintessência da poesia
hermética ao lado de Ungaretti e Quasimodo) é flagrado,
na segunda fase de sua obra, como um autor clássico
(“o poeta obscuro, avarento de palavras, já não economiza,
gasta tudo o que tem”). Mas o ensaio vale, sobretudo, pelas
análises pontuais de poetas pouco conhecidos fora da Itália,
como Vittorio Sereni, Franco Fortini, Andrea Zanzotto e
Amelia Rosselli.
O panorama sobre a prosa, focado em Gadda, Calvino e
Elsa Morante, não surpreende pela escolha dos nomes, mas
pela hierarquização na qual a autora de La Storia surge
como síntese das trilhas abertas por Carlo Levi, Primo Levi,
Lampedusa e Pratolini. E, no panorama sobre o ensaio, Berardinelli
explicita suas preferências por esse gênero híbrido,
que remonta aos textos de Emilio Cecchi e aos diários de
Gramsci e que, no período pós-45, inclui a reportagem Cristo
Parou em Eboli, de Carlo Levi, os aforismos de Saba e as “narrativas
críticas” de gigantes de erudição como Mario Praz e
Giacomo Bebenedetti.
Não Incentivem o Romance inclui ainda estudos sobre
clássicos europeus de Stendhal a Kafka, uma “teoria literária
nacional” a partir dos binômios Dante/Petrarca e Pasolini/
Calvino, e entrevista com o próprio Berardinelli – um ensaísta
hoje incontornável para pensar os desdobramentos estéticos
da modernidade e do pós-modernismo sem perder o
chão da história.
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