Edição do tratado De Anima mostra como
Aristóteles formulou uma teoria explicativa da alma que, mantendo o ideal
epistemológico do platonismo, estabelece uma relação positiva
entre sensação e pensamento | |
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De
Anima Aristóteles Apresentação,
tradução e notas de Maria Cecília Gomes dos Reis Editora 34 –360 págs. – R$
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Pela primeira vez em nosso país e provavelmente também em língua
portuguesa, pode-se ter acesso a uma tradução feita diretamente
do grego do tratado de Aristóteles conhecido pela denominação
latina De Anima, isto é, “sobre a alma” (perì psykhês),
de autoria de Maria Cecília Gomes dos Reis, responsável também
por uma introdução e por notas de comentário ao texto.
Trata-se de uma empreitada difícil e meritória. Quem lida sistematicamente
com os textos aristotélicos sabe das dificuldades envolvidas no processo
de sua tradução: caráter árido e às vezes elíptico
de escritos originalmente elaborados como anotações para exposições
orais; certa fluidez de vocabulário que desafia o intérprete a recorrer
a diferentes obras, nas quais nem sempre há evidente harmonia no seu emprego;
riqueza semântica de determinadas palavras, algumas das quais Aristóteles
está elevando a status filosófico sem precedentes e que
exigem acurada compreensão dos diferentes contextos; ocasional dificuldade
do tradutor para encontrar palavra ou expressão que não dê
margens a mal-entendidos, em virtude de significados conferidos pela posteridade.
Maria Cecília conhece tais dificuldades, chegando a explicitar algumas
delas (ver págs. 10, 18 e 19).
Tudo isso, enfim, torna a tradução
dos textos de Aristóteles uma tarefa ao mesmo tempo trabalhosa, fascinante
e temerária, que desafia os estudiosos. Mas eles são movidos também
pela certeza de que traduzir Aristóteles é preciso, em virtude da
excepcional densidade filosófica de um pensador reconhecido unanimemente
– mesmo por aqueles que o criticaram – como um dos maiores, um verdadeiro desbravador
e fundador, cuja obra ainda tem algo a nos dizer. O De Anima, tratado
relativamente breve se comparado a obras como Física e Política,
é certamente um dos que mais justificam esse reconhecimento.
Nele
se pode perceber o quanto Aristóteles se empenhava em pensar, de forma
original, problemas herdados da tradição. Certamente, foi o primeiro
grande filósofo a elaborar seu pensamento inscrevendo-o na história,
julgando que suas propostas filosóficas podiam e deviam ser construídas
à luz dos freqüentes equívocos e eventuais acertos de seus
predecessores, a respeito de temas que haviam sido já, nalguma medida,
formulados por eles. Por isso, adotou o procedimento metodológico de iniciar
várias de suas obras por uma revisão das opiniões dos predecessores
sobre a questão enfocada, via de regra obtendo como resultado uma forma
indireta e negativa de adentrar o terreno que pretendia explorar. No caso deste
tratado, para saber o que é a alma, é útil, olhando para
o passado, observar o que se disse sobre isso, para constatar, inicialmente, o
que ela não é, assim preparando a boa maneira de tratar a questão.
Eis por que o primeiro livro do De Anima consistirá, em sua maior
parte, numa análise das opiniões já sustentadas pelos predecessores.
Essa relação com a tradição, no entanto, não
é apenas questão de método. Com isso penetramos no âmago
do aristotelismo, porque se trata de lembrar que Aristóteles foi um pensador
impregnado de platonismo, filosofia que conheceu e debateu durante cerca de vinte
anos de sua vida. Aí está provavelmente a melhor maneira de formular
o problema que atravessa o De Anima: mantendo o ideal epistemológico
do platonismo, Aristóteles necessita de uma teoria explicativa da alma
que estabeleça uma relação positiva entre sensação
e pensamento, mas que não o comprometa com teses metafísicas dessa
filosofia que categoricamente rejeitou em sua maturidade.
Tais teses baseiam-se
na dualidade ontológica estabelecida entre formas puramente inteligíveis,
objetos legítimos de conhecimento, e objetos sensíveis, precários
e mutáveis, incapazes portanto de satisfazer ao ideal rigoroso de um conhecimento
eterno e imutável. Ora, essa doutrina dualista se fazia acompanhar de outra,
a ela intimamente associada, a da preexistência da alma e sua imortalidade,
que permitiu a Platão estabelecer certo parentesco entre alma, sede do
pensar e expressão da identidade, e formas; paralelamente, afirma-se o
parentesco entre corpo e objetos sensíveis.
Contudo, a nova doutrina da alma precisa preservar aquilo
que Aristóteles considera positivo no platonismo
e que está, por isso, tentando retomar e refinar:
sua concepção de conhecimento, entendida como
obtenção de universais imutáveis, algo
que se pode depreender do célebre capítulo
final dos Analíticos Posteriores e de passagens
espalhadas pela Metafísica – universais
que, não obstante, habitarão agora apenas
a intelecção da mente e não mais uma
qualquer região realmente separada do mundo natural.
Assim, sua filosofia pode ser vista como uma espécie
de reformulação do platonismo, ao propor uma
relação de interação da forma
com a matéria – conceito este verdadeiramente inovador
– , que permite ainda um conhecimento imutável, mas
apenas abstrato, relativo às substâncias sensíveis,
porque, sendo elas compostos de matéria e forma,
deixam-se compreender, apesar de mutáveis, mediante
processos indutivos e abstratos, à luz de conceitos
universais que possibilitam definições também
universais do que nelas há de essencial. Uma epistemologia
platônica em espírito que se obtém agora
mediante uma ontologia, a bem dizer, antiplatônica.
Isso tem conseqüências para sua doutrina da alma.
Pois é preciso então preservar a imutabilidade
do pensamento, já que o intelecto é “lugar”
dessas formas universais, ao mesmo tempo explicando seu
comércio com os sentidos e as sensações,
pois estas, agora, são legítimo ponto de partida
do processo de conhecimento. Grosso modo, no platonismo
maduro de diálogos como Fédon, Banquete
e República, os sentidos forneciam
apenas obstáculos ao conhecimento da alma e podiam
ser entendidos apenas como um meio, inevitável para
uma alma provisoriamente presa a um corpo, de acesso às
formas inteligíveis. Com Aristóteles, embora
os sentidos não nos dêem conhecimento stricto
sensu, eles são a instância mais próxima
da realidade, das substâncias sensíveis particulares,
às quais esse conhecimento se refere. Eles são
agora elementos cognitivos indispensáveis. Há
que acolhê-los, portanto, na nova doutrina da alma,
mediante uma análise das sensações
e dos sentidos que também os expliquem, de modo que
o pensamento possa deles se servir, sem, contudo, tornar-se
algo em si mesmo mutável.
Paralelamente, essa recuperação
da esfera da sensibilidade deve evitar os equívocos de uma visão
toscamente materialista da alma, dialogando criticamente com filósofos
que propuseram descrições excessivamente pautadas por razões
físicas e reduções fisiológicas. Aristóteles,
portanto, corre neste tratado por sobre um fio de navalha, construindo uma concepção
bastante original de alma que, para se afirmar, precisa evitar os excessos dos
predecessores, ao mesmo tempo que deles se serve.
Definir a alma como
“forma do corpo” é propor essa visão moderada, defendendo, à
maneira da Física e da Metafísica, uma completa
interdependência entre corpo e alma; pois, assim como nas substâncias
sensíveis da natureza não existe forma sem matéria e matéria
sem forma, porque a existência separada e determinada só se compreende
nessa composição, o mesmo vale para a alma, que não existe
sem o corpo. Com isso, corrige-se um idealismo de corte platônico e evita-se
um materialismo extremado.
Ao compreender o conceito de alma à
luz desta valorização do mundo natural, o De Anima é,
em primeiro plano, um tratado de biologia, isto é, investiga a alma também
como princípio de vida orgânica. A alma se torna então origem
do movimento no corpo, sem ser ela mesma movida. Haverá três tipos
de alma: nutritiva, que todos possuem; perceptiva, que, como capacidade de discriminação,
é ausente nas plantas e presente nos animais que se locomovem e nos homens;
e intelectiva, exclusiva dos homens, cuja relação com os sentidos
lhes proporciona a capacidade de pensamento, raciocínio, opinião,
deliberação prática e conhecimento.
Ora, sendo agora
o conhecimento um processo no qual o intelecto pensa formas cuja origem são
as sensações, faz-se necessária uma investigação
que explique como isso é possível. Noutras palavras, tal interação
entre corpo e alma, entre sentir e pensar, vista agora como uma colaboração,
conduz e mesmo obriga Aristóteles a pôr em ação sua
notável capacidade analítica, para conciliar aquilo que, aos olhos
de Platão, parecia inconciliável. O resultado são momentos
ao mesmo tempo de alto nível filosófico e extrema dificuldade de
compreensão, porque o assunto, praticamente inédito, é inevitavelmente
espinhoso e, por isso mesmo, fascinante.
Assim, para comentar o fato da
sensação e o ato do pensamento, é preciso falar de passividade
e atividade. De certo modo, a sensação é uma passividade,
porque somos afetados pelo objeto, mas deve já conter certa capacidade
de discriminação, que a aproxima do pensamento; este, por sua vez,
tem de ser, como vimos, impassível; mas de algum modo é também
ativo, pois pensar é produzir formas no intelecto a partir das sensações.
Os momentos mais notáveis do tratado são justamente os que se debruçam
sobre esses temas, evocando noções fundamentais de sua filosofia,
como ato e potência, e um conceito sofisticado de imaginação,
que parece diplomaticamente mediar este comércio difícil entre o
intelecto e os sentidos.
As notas de Maria Cecília apresentam com eficiência
os diferentes contextos das discussões de Aristóteles
com seus predecessores, informam sobre debates de comentadores
relativos a questões importantes, contêm observações
úteis de caráter filológico e não
se abstêm de reconhecer os momentos mais problemáticos
da análise e argumentação do filósofo.
Cumprem com sucesso, em suma, as funções que
competem a um trabalho acadêmico dessa natureza: proporcionar
ao especialista no aristotelismo um instrumento de análise
em sua própria língua, assim auxiliando na
formação de um vocabulário filosófico
no vernáculo. Oferecer aos estudiosos do assunto,
nas mais variadas disciplinas, a oportunidade de um acesso
seguro a este precursor do estudo das relações
entre corpo e alma. E também, por que não,
despertar o interesse daqueles que se interessam por conhecer
filósofos verdadeiramente geniais.
ROBERTO BOLZANI FILHO é doutor em história da filosofia antiga
pela USP e professor do Departamento de Filosofia da mesma universidade; publica
regularmente artigos sobre filosofia grega em periódicos especializados.
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