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RESENHA|FILOSOFIA
A alma como "forma do corpo"
Roberto Bolzani Filho
Edição do tratado De Anima mostra como Aristóteles formulou uma teoria explicativa da alma que, mantendo o ideal epistemológico do platonismo, estabelece uma relação positiva entre sensação e pensamento
De Anima
Aristóteles

Apresentação, tradução e notas de Maria Cecília Gomes dos Reis
Editora 34 –360 págs. – R$ 44

Pela primeira vez em nosso país e provavelmente também em língua portuguesa, pode-se ter acesso a uma tradução feita diretamente do grego do tratado de Aristóteles conhecido pela denominação latina De Anima, isto é, “sobre a alma” (perì psykhês), de autoria de Maria Cecília Gomes dos Reis, responsável também por uma introdução e por notas de comentário ao texto.

Trata-se de uma empreitada difícil e meritória. Quem lida sistematicamente com os textos aristotélicos sabe das dificuldades envolvidas no processo de sua tradução: caráter árido e às vezes elíptico de escritos originalmente elaborados como anotações para exposições orais; certa fluidez de vocabulário que desafia o intérprete a recorrer a diferentes obras, nas quais nem sempre há evidente harmonia no seu emprego; riqueza semântica de determinadas palavras, algumas das quais Aristóteles está elevando a status filosófico sem precedentes e que exigem acurada compreensão dos diferentes contextos; ocasional dificuldade do tradutor para encontrar palavra ou expressão que não dê margens a mal-entendidos, em virtude de significados conferidos pela posteridade. Maria Cecília conhece tais dificuldades, chegando a explicitar algumas delas (ver págs. 10, 18 e 19).

Tudo isso, enfim, torna a tradução dos textos de Aristóteles uma tarefa ao mesmo tempo trabalhosa, fascinante e temerária, que desafia os estudiosos. Mas eles são movidos também pela certeza de que traduzir Aristóteles é preciso, em virtude da excepcional densidade filosófica de um pensador reconhecido unanimemente – mesmo por aqueles que o criticaram – como um dos maiores, um verdadeiro desbravador e fundador, cuja obra ainda tem algo a nos dizer. O De Anima, tratado relativamente breve se comparado a obras como Física e Política, é certamente um dos que mais justificam esse reconhecimento.

Nele se pode perceber o quanto Aristóteles se empenhava em pensar, de forma original, problemas herdados da tradição. Certamente, foi o primeiro grande filósofo a elaborar seu pensamento inscrevendo-o na história, julgando que suas propostas filosóficas podiam e deviam ser construídas à luz dos freqüentes equívocos e eventuais acertos de seus predecessores, a respeito de temas que haviam sido já, nalguma medida, formulados por eles. Por isso, adotou o procedimento metodológico de iniciar várias de suas obras por uma revisão das opiniões dos predecessores sobre a questão enfocada, via de regra obtendo como resultado uma forma indireta e negativa de adentrar o terreno que pretendia explorar. No caso deste tratado, para saber o que é a alma, é útil, olhando para o passado, observar o que se disse sobre isso, para constatar, inicialmente, o que ela não é, assim preparando a boa maneira de tratar a questão. Eis por que o primeiro livro do De Anima consistirá, em sua maior parte, numa análise das opiniões já sustentadas pelos predecessores.

Essa relação com a tradição, no entanto, não é apenas questão de método. Com isso penetramos no âmago do aristotelismo, porque se trata de lembrar que Aristóteles foi um pensador impregnado de platonismo, filosofia que conheceu e debateu durante cerca de vinte anos de sua vida. Aí está provavelmente a melhor maneira de formular o problema que atravessa o De Anima: mantendo o ideal epistemológico do platonismo, Aristóteles necessita de uma teoria explicativa da alma que estabeleça uma relação positiva entre sensação e pensamento, mas que não o comprometa com teses metafísicas dessa filosofia que categoricamente rejeitou em sua maturidade.

Tais teses baseiam-se na dualidade ontológica estabelecida entre formas puramente inteligíveis, objetos legítimos de conhecimento, e objetos sensíveis, precários e mutáveis, incapazes portanto de satisfazer ao ideal rigoroso de um conhecimento eterno e imutável. Ora, essa doutrina dualista se fazia acompanhar de outra, a ela intimamente associada, a da preexistência da alma e sua imortalidade, que permitiu a Platão estabelecer certo parentesco entre alma, sede do pensar e expressão da identidade, e formas; paralelamente, afirma-se o parentesco entre corpo e objetos sensíveis.

Contudo, a nova doutrina da alma precisa preservar aquilo que Aristóteles considera positivo no platonismo e que está, por isso, tentando retomar e refinar: sua concepção de conhecimento, entendida como obtenção de universais imutáveis, algo que se pode depreender do célebre capítulo final dos Analíticos Posteriores e de passagens espalhadas pela Metafísica – universais que, não obstante, habitarão agora apenas a intelecção da mente e não mais uma qualquer região realmente separada do mundo natural. Assim, sua filosofia pode ser vista como uma espécie de reformulação do platonismo, ao propor uma relação de interação da forma com a matéria – conceito este verdadeiramente inovador – , que permite ainda um conhecimento imutável, mas apenas abstrato, relativo às substâncias sensíveis, porque, sendo elas compostos de matéria e forma, deixam-se compreender, apesar de mutáveis, mediante processos indutivos e abstratos, à luz de conceitos universais que possibilitam definições também universais do que nelas há de essencial. Uma epistemologia platônica em espírito que se obtém agora mediante uma ontologia, a bem dizer, antiplatônica.

Isso tem conseqüências para sua doutrina da alma. Pois é preciso então preservar a imutabilidade do pensamento, já que o intelecto é “lugar” dessas formas universais, ao mesmo tempo explicando seu comércio com os sentidos e as sensações, pois estas, agora, são legítimo ponto de partida do processo de conhecimento. Grosso modo, no platonismo maduro de diálogos como Fédon, Banquete e República, os sentidos forneciam apenas obstáculos ao conhecimento da alma e podiam ser entendidos apenas como um meio, inevitável para uma alma provisoriamente presa a um corpo, de acesso às formas inteligíveis. Com Aristóteles, embora os sentidos não nos dêem conhecimento stricto sensu, eles são a instância mais próxima da realidade, das substâncias sensíveis particulares, às quais esse conhecimento se refere. Eles são agora elementos cognitivos indispensáveis. Há que acolhê-los, portanto, na nova doutrina da alma, mediante uma análise das sensações e dos sentidos que também os expliquem, de modo que o pensamento possa deles se servir, sem, contudo, tornar-se algo em si mesmo mutável.

Paralelamente, essa recuperação da esfera da sensibilidade deve evitar os equívocos de uma visão toscamente materialista da alma, dialogando criticamente com filósofos que propuseram descrições excessivamente pautadas por razões físicas e reduções fisiológicas. Aristóteles, portanto, corre neste tratado por sobre um fio de navalha, construindo uma concepção bastante original de alma que, para se afirmar, precisa evitar os excessos dos predecessores, ao mesmo tempo que deles se serve.

Definir a alma como “forma do corpo” é propor essa visão moderada, defendendo, à maneira da Física e da Metafísica, uma completa interdependência entre corpo e alma; pois, assim como nas substâncias sensíveis da natureza não existe forma sem matéria e matéria sem forma, porque a existência separada e determinada só se compreende nessa composição, o mesmo vale para a alma, que não existe sem o corpo. Com isso, corrige-se um idealismo de corte platônico e evita-se um materialismo extremado.

Ao compreender o conceito de alma à luz desta valorização do mundo natural, o De Anima é, em primeiro plano, um tratado de biologia, isto é, investiga a alma também como princípio de vida orgânica. A alma se torna então origem do movimento no corpo, sem ser ela mesma movida. Haverá três tipos de alma: nutritiva, que todos possuem; perceptiva, que, como capacidade de discriminação, é ausente nas plantas e presente nos animais que se locomovem e nos homens; e intelectiva, exclusiva dos homens, cuja relação com os sentidos lhes proporciona a capacidade de pensamento, raciocínio, opinião, deliberação prática e conhecimento.

Ora, sendo agora o conhecimento um processo no qual o intelecto pensa formas cuja origem são as sensações, faz-se necessária uma investigação que explique como isso é possível. Noutras palavras, tal interação entre corpo e alma, entre sentir e pensar, vista agora como uma colaboração, conduz e mesmo obriga Aristóteles a pôr em ação sua notável capacidade analítica, para conciliar aquilo que, aos olhos de Platão, parecia inconciliável. O resultado são momentos ao mesmo tempo de alto nível filosófico e extrema dificuldade de compreensão, porque o assunto, praticamente inédito, é inevitavelmente espinhoso e, por isso mesmo, fascinante.

Assim, para comentar o fato da sensação e o ato do pensamento, é preciso falar de passividade e atividade. De certo modo, a sensação é uma passividade, porque somos afetados pelo objeto, mas deve já conter certa capacidade de discriminação, que a aproxima do pensamento; este, por sua vez, tem de ser, como vimos, impassível; mas de algum modo é também ativo, pois pensar é produzir formas no intelecto a partir das sensações. Os momentos mais notáveis do tratado são justamente os que se debruçam sobre esses temas, evocando noções fundamentais de sua filosofia, como ato e potência, e um conceito sofisticado de imaginação, que parece diplomaticamente mediar este comércio difícil entre o intelecto e os sentidos.

As notas de Maria Cecília apresentam com eficiência os diferentes contextos das discussões de Aristóteles com seus predecessores, informam sobre debates de comentadores relativos a questões importantes, contêm observações úteis de caráter filológico e não se abstêm de reconhecer os momentos mais problemáticos da análise e argumentação do filósofo. Cumprem com sucesso, em suma, as funções que competem a um trabalho acadêmico dessa natureza: proporcionar ao especialista no aristotelismo um instrumento de análise em sua própria língua, assim auxiliando na formação de um vocabulário filosófico no vernáculo. Oferecer aos estudiosos do assunto, nas mais variadas disciplinas, a oportunidade de um acesso seguro a este precursor do estudo das relações entre corpo e alma. E também, por que não, despertar o interesse daqueles que se interessam por conhecer filósofos verdadeiramente geniais.

ROBERTO BOLZANI FILHO é doutor em história da filosofia antiga pela USP e professor do Departamento de Filosofia da mesma universidade; publica regularmente artigos sobre filosofia grega em periódicos especializados.

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