Busca
   Início  |  Edusp  |  Edusp – English  |  Edusp – Español  |  Livrarias  |  Catálogo  |  Eventos  |  Compras 
 
  Menu

  Como publicar
  Convites
  Caderno de leitura
  Prêmios
  Lançamentos
  Livros abertos
  Editais
  Doações
  RH/Concurso
  Mapa do site
  Fale conosco

  Logon
 
Email:
Senha:
 
  SAC
Serviço de
Atendimento
ao Cliente
(11) 3091-4008
08:30 as 17:30
RESENHA|ENSAIO
Dialética do desastre
Eduardo Sterzi
Saem no Brasil A Morte da Tragédia, Depois de Babel e Tolstói ou Dostoiévski, estudos clássicos de George Steiner
 
Depois de Babel: Questões de Linguagem e Tradução
George Steiner

Tradução de Carlos Faraco – Editora UFPR
530 págs. – R$ 70


A Morte da Tragédia
George Steiner
Tradução de Isa Kopelman – Editora Perspectiva
220 págs. – R$ 45

Metafísica do romance
Primeiro livro de Steiner, publicado originalmente em 1959, Tolstói ou Dostoiévski: Um Ensaio sobre o Velho Criticismo (tradução de Isa Kopelman e Luana Chnaiderman de Almeida, Perspectiva, 278 págs., R$ 55) é uma análise dos mestres russos que se faz na contramão do new criticism (embora dele se aproveite). Levando em consideração os detalhes formais e as ambigüidades da construção ficcional, mergulha no contexto do século XIX e no universo místico-ideológico sem o qual obras como Ana Karênina e Os Demônios seriam inapreensíveis. Perseguindo o preceito de Sartre, segundo o qual “a técnica do romance sempre nos leva de volta à metafísica do romancista”, Steiner contrasta a biografia desses autores visionários com a situação singular do gênero romanesco na Rússia, mostrando como “a estatura desses dois romancistas é inseparável de seu engajamento teológico”.

A Morte da Tragédia e Depois de Babel, separados por pouco mais de uma década em suas primeiras edições, são, ainda hoje, possivelmente os mais altos cumes na vasta e multifária bibliografia de George Steiner. Ambos oferecem demonstrações irrefragáveis daquela húbris intelectual tão característica de sua obra, daquela desmesura de rematado polímata que não se intimida mesmo diante dos maiores desafios, e antes os persegue com gosto, com paixão. No Passion Spent (Nenhuma Paixão Desperdiçada) é o título emblemático de uma de suas coletâneas de ensaios. Ao taedium vivendi – e sobretudo, aqui, legendi – das drummondianas “tristes [...] coisas consideradas sem ênfase” (e não esqueçamos que, em No Castelo do Barba Azul, Steiner surpreende o laço fatal entre o grande ennui do século XIX, com suas correspondentes fantasias de violência libertadora, e a explosão de barbárie política do XX), ele reage com o tom sempre apaixonado de sua escrita, com o entusiasmo que o leva com freqüência a abarcar muito mais do que seria recomendável para a competência técnica e o tempo de leitura, e vida, de um único homem: da história da tragédia à teoria da tradução, do romance russo à “revolução da linguagem”, da antropologia de Lévi-Strauss à filosofia de Heidegger, da poesia de Dante à música de Schoenberg, do xadrez à pedagogia et cetera. A cada texto – a cada frase – Steiner parece querer refutar os versos de Yeats: talvez não somente os piores estejam repletos de convicção e apaixonada intensidade.

O grande estranhamento do leitor, frente ao conjunto da obra de Steiner, vem quiçá de constatar que esse páthos e essa ênfase estão a serviço de uma obstinada disposição elegíaca: todos os seus escritos são, no fundo, lamentos pela perda de alguns padrões exemplares de civilização; padrões que, no entanto, talvez nunca tenham existido integralmente senão como ideais (sendo a relutância em admitir essa provável inexistência o limite maior de sua crítica cultural, mas também a razão de sua singularidade frente à apatia disseminada das rotinas de leitura). Uma idealização desse tipo está na base do argumento de A Morte da Tragédia, uma idealização que, como demonstra o próprio Steiner, não é apenas sua, mas se confunde com a própria formação da cultura literária moderna a partir de fins da Idade Média: a idéia de que os gregos – com seus mitos, com seu teatro, com sua filosofia – teriam esgotado os campos do pensável e do representável, traçando de uma vez por todas os círculos dentro dos quais se moveriam a imaginação e a criatividade futuras.

Escrito como tese de doutorado (tese, aliás, rejeitada por Oxford em sua primeira redação) e publicado originalmente em 1961, o livro, cujo título não oculta a ambição de medir-se com Nietzsche, parte de um esforço para definir rigorosamente a tragédia como forma específica. “Todos os homens”, constata Steiner, “têm consciência da tragédia na vida. Mas a tragédia como uma forma de drama não é universal.” O drama baseado na “representação do sofrimento e heroísmo pessoal” irrompe num terreno bem circunscrito: “Essa idéia e a visão do homem que ela implica são gregas. E quase até o momento de seu declínio, as formas trágicas são helênicas”. O verdadeiro tragediógrafo é o regente de uma negatividade sem freios: “As tragédias terminam mal. O personagem trágico é rompido por forças que não podem ser completamente compreendidas nem superadas pela prudência racional”. Temos drama sério – mas não tragédia – quando a catástrofe comporta alguma solução razoável; como conclui ironicamente Steiner: “Por mais flexíveis que fossem as leis do divórcio, não poderiam alterar o destino de Agamêmnon; a psiquiatria social não é resposta para Édipo. Mas relações econômicas mais saudáveis ou melhor alinhadas podem resolver algumas das graves crises nos dramas de Ibsen”. E é justamente porque o sofrimento do herói não comporta reparações que a “percepção terrível e dura da vida humana” inerente à tragédia revelase uma afirmação extrema da dignidade do homem: seja em Sófocles, Shakespeare ou Racine, os desenlaces guardam uma “fusão de dor e êxtase” em que o “lamento pela queda do homem” faz-se indistinto do “regozijo pela ressurreição de seu espírito”.

Tão alta exigência torna raro o flagrante da forma. Daí que escrever uma história crítica da tragédia é, forçosamente, descrever o declínio da tragédia (e a palavra declínio deve ser entendida sobretudo em sentido etimológico, sem presumir juízo de valor: tudo o que desce das alturas à terra e aos homens, assim como o que se desvia de alguma rota programada de início, declina). Para Steiner, é o século XVII, com Racine, que marca o fim da tragédia propriamente dita: por aqueles anos, certos elementos imprescindíveis à tragédia – basicamente, um horizonte teológico, e antes mítico, e a pressuposição do mal, e mal de origens metafísicas, não sociais – saíram de cena para, talvez, não mais voltar, ou voltar apenas em formas residuais, impuras. Uma grande contraposição dualista entre tempos propícios à tragédia e tempos desfavoráveis traveja o livro, mas é a constatação da descontinuidade da tradição do drama trágico – descontinuidade que faz mesmo duvidar de uma tradição no sentido exato da palavra – que está na base das leituras penetrantes dos principais textos de cada momento particular. Steiner tem o olho e o ouvido sumamente apurados para ler e escutar em detalhes lexicais, ou mesmo tonais, os sintomas do declínio que busca descrever. É genial, por exemplo, o paralelo que estabelece entre passagens de Woyzeck e de King Lear, demonstrando o quanto Büchner deve a Shakespeare ao insistir na fragmentação e aspereza das falas; aliás, Steiner reconhece na peça de Büchner “a primeira tragédia real da baixa vida”, a primeira tragédia que contradiz a regra implícita no drama ático, elisabetano e neoclássico, segundo a qual o sofrimento trágico é prerrogativa de aristocratas.

Depois de Babel – que se apresenta, à primeira vista, como um estudo sobre a tradução, mas é também um magistral exercício de literatura comparada e de filosofia da linguagem – pode ser compreendido como uma ampliação e retificação do modelo declinante de interpretação da cultura proposto em A Morte da Tragédia. Ampliação porque, agora, o foco não está restrito a uma determinada forma poética (embora, por meio da análise daquela forma, a história universal se desse a reler), mas se abre sobre o corpus total da linguagem e da cultura. Retificação porque Steiner, aqui, deixa explícita a dialética inerente ao declínio: a “ruína de Babel” pode ser um “fardo”, mas é também “esplendor”. Não por acaso, o estudo é dedicado aos poetas, aqueles que, de acordo com Steiner, dão “vida à linguagem” e sabem que “o ocorrido em Babel foi tanto um desastre quanto (e essa é a etimologia da palavra desastre) uma chuva de estrelas sobre o ser humano”, uma chuva fecundante.

A idéia central do livro (publicado originalmente em 1975, porém vertido a partir de sua terceira edição ampliada, de 1998) é a de uma coincidência integral entre compreender e traduzir e, portanto (o que pode soar mais controverso), entre tradução e linguagem – e, dada a primordialidade da linguagem na configuração da cultura, entre tradução e cultura. Steiner afirma sem hesitar que “um estudo da tradução é um estudo da linguagem”, observando, em acréscimo, que “a tradução entre línguas é a principal preocupação deste livro, mas é também uma entrada, uma abertura para uma investigação sobre a linguagem em si”. Uma “teoria da tradução” (e vale lembrar que Steiner desconfia do uso da palavra “teoria” nas ciências humanas) “é necessariamente uma teoria, ou melhor, um modelo histórico-psicológico, parte dedutivo, parte intuitivo, das operações de linguagem em si”.

Mas é a radiante metáfora epistemológica em torno da qual se organiza o último capítulo que concentra a retificação do modelo declinante: a metáfora da topologia, extraída do léxico da matemática, onde designa o tratamento das propriedades geométricas de uma figura que permanecem inalteradas quando esta sofre uma deformação contínua. “Definida topologicamente’”, propõe Steiner, “a cultura é uma seqüência de traduções e transformações de constantes.” (E, conforme acrescenta, quando admitirmos que é disso que se trata e nos dispusermos a estudar essas transformações, “chegaremos a uma compreensão mais clara do motor lingüístico-semântico da cultura e do que mantém diferentes línguas e suas ‘áreas topológicas’ distintas entre si”.) Aqui, o desenho vertical do declínio horizontaliza-se, ou, mais exatamente, deixa de ser linear e finito, espacializa-se, expande-se por novas dimensões. Essa abordagem topológica convida à releitura de A Morte da Tragédia e do livro de Steiner complementar àquele, Antígonas, de 1984 (ainda sem edição brasileira), no qual são estudadas comparativamente as inúmeras retomadas do mito da filha de Édipo desde a Antigüidade até o presente. Aceitando-se o risco de algum reducionismo esquemático, pode-se dizer que A Morte da Tragédia é pré-topológico, enquanto Antígonas, seguindo Depois de Babel, é já topológico: em vez de declínio, temos a “invariância na transformação”, ou, para lembrar duas fórmulas tipicamente steinerianas, temos a exploração das múltiplas potencialidades das “gramáticas da criação” mesmo numa “pós-cultura” – mesmo depois de todos os desastres.

EDUARDO STERZI é doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp, autor de Prosa (IEL/CORAG, 2001) e organizador de Do Céu do Futuro: Cinco Ensaios sobre Augusto de Campos (Marco, 2006).

início    <<                                                                                      >>

Copyright © 2004-2019 Edusp - Editora da Universidade de São Paulo - Créditos