Saem
no Brasil A Morte da Tragédia, Depois de Babel e Tolstói
ou Dostoiévski, estudos clássicos de George Steiner |
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Depois
de Babel: Questões de Linguagem e Tradução George Steiner
Tradução
de Carlos Faraco – Editora UFPR 530 págs. – R$ 70 A
Morte da Tragédia George Steiner Tradução
de Isa Kopelman – Editora Perspectiva 220 págs. – R$ 45 | |
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Metafísica
do romance Primeiro livro de Steiner, publicado originalmente em 1959,
Tolstói ou Dostoiévski: Um Ensaio sobre o Velho Criticismo (tradução
de Isa Kopelman e Luana Chnaiderman de Almeida, Perspectiva, 278 págs., R$ 55)
é uma análise dos mestres russos que se faz na contramão do new criticism
(embora dele se aproveite). Levando em consideração os detalhes formais e as ambigüidades
da construção ficcional, mergulha no contexto do século XIX e no universo místico-ideológico
sem o qual obras como Ana Karênina e Os Demônios seriam inapreensíveis.
Perseguindo o preceito de Sartre, segundo o qual “a técnica do romance sempre
nos leva de volta à metafísica do romancista”, Steiner contrasta a biografia
desses autores visionários com a situação singular do gênero romanesco na Rússia,
mostrando como “a estatura desses dois romancistas é inseparável de seu engajamento
teológico”.
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A Morte da Tragédia e Depois de Babel, separados por
pouco mais de uma década em suas primeiras edições, são,
ainda hoje, possivelmente os mais altos cumes na vasta e multifária bibliografia
de George Steiner. Ambos oferecem demonstrações irrefragáveis
daquela húbris intelectual tão característica de sua obra,
daquela desmesura de rematado polímata que não se intimida mesmo
diante dos maiores desafios, e antes os persegue com gosto, com paixão.
No Passion Spent (Nenhuma Paixão Desperdiçada) é
o título emblemático de uma de suas coletâneas de ensaios.
Ao taedium vivendi – e sobretudo, aqui, legendi – das drummondianas
“tristes [...] coisas consideradas sem ênfase” (e não esqueçamos
que, em No Castelo do Barba Azul, Steiner surpreende o laço fatal
entre o grande ennui do século XIX, com suas correspondentes fantasias
de violência libertadora, e a explosão de barbárie política
do XX), ele reage com o tom sempre apaixonado de sua escrita, com o entusiasmo
que o leva com freqüência a abarcar muito mais do que seria recomendável
para a competência técnica e o tempo de leitura, e vida, de um único
homem: da história da tragédia à teoria da tradução,
do romance russo à “revolução da linguagem”, da antropologia
de Lévi-Strauss à filosofia de Heidegger, da poesia de Dante à
música de Schoenberg, do xadrez à pedagogia et cetera.
A cada texto – a cada frase – Steiner parece querer refutar os versos de Yeats:
talvez não somente os piores estejam repletos de convicção
e apaixonada intensidade.
O grande estranhamento do leitor, frente ao conjunto da obra de Steiner, vem quiçá
de constatar que esse páthos e essa ênfase estão
a serviço de uma obstinada disposição elegíaca: todos
os seus escritos são, no fundo, lamentos pela perda de alguns padrões
exemplares de civilização; padrões que, no entanto, talvez
nunca tenham existido integralmente senão como ideais (sendo a relutância
em admitir essa provável inexistência o limite maior de sua crítica
cultural, mas também a razão de sua singularidade frente à
apatia disseminada das rotinas de leitura). Uma idealização desse
tipo está na base do argumento de A Morte da Tragédia,
uma idealização que, como demonstra o próprio Steiner, não
é apenas sua, mas se confunde com a própria formação
da cultura literária moderna a partir de fins da Idade Média: a
idéia de que os gregos – com seus mitos, com seu teatro, com sua filosofia
– teriam esgotado os campos do pensável e do representável, traçando
de uma vez por todas os círculos dentro dos quais se moveriam a imaginação
e a criatividade futuras.
Escrito
como tese de doutorado (tese, aliás, rejeitada por
Oxford em sua primeira redação) e publicado
originalmente em 1961, o livro, cujo título não
oculta a ambição de medir-se com Nietzsche,
parte de um esforço para definir rigorosamente a
tragédia como forma específica. “Todos os
homens”, constata Steiner, “têm consciência
da tragédia na vida. Mas a tragédia como uma
forma de drama não é universal.” O drama baseado
na “representação do sofrimento e heroísmo
pessoal” irrompe num terreno bem circunscrito: “Essa idéia
e a visão do homem que ela implica são gregas.
E quase até o momento de seu declínio, as
formas trágicas são helênicas”. O verdadeiro
tragediógrafo é o regente de uma negatividade
sem freios: “As tragédias terminam mal. O personagem
trágico é rompido por forças que não
podem ser completamente compreendidas nem superadas pela
prudência racional”. Temos drama sério – mas
não tragédia – quando a catástrofe
comporta alguma solução razoável; como
conclui ironicamente Steiner: “Por mais flexíveis
que fossem as leis do divórcio, não poderiam
alterar o destino de Agamêmnon; a psiquiatria social
não é resposta para Édipo. Mas relações
econômicas mais saudáveis ou melhor alinhadas
podem resolver algumas das graves crises nos dramas de Ibsen”.
E é justamente porque o sofrimento do herói
não comporta reparações que a “percepção
terrível e dura da vida humana” inerente à
tragédia revelase uma afirmação extrema
da dignidade do homem: seja em Sófocles, Shakespeare
ou Racine, os desenlaces guardam uma “fusão de dor
e êxtase” em que o “lamento pela queda do homem” faz-se
indistinto do “regozijo pela ressurreição
de seu espírito”.
Tão alta exigência torna raro o flagrante da
forma. Daí que escrever uma história crítica
da tragédia é, forçosamente, descrever
o declínio da tragédia (e a palavra declínio
deve ser entendida sobretudo em sentido etimológico,
sem presumir juízo de valor: tudo o que desce das
alturas à terra e aos homens, assim como o que se
desvia de alguma rota programada de início, declina).
Para Steiner, é o século XVII, com Racine,
que marca o fim da tragédia propriamente dita: por
aqueles anos, certos elementos imprescindíveis à
tragédia – basicamente, um horizonte teológico,
e antes mítico, e a pressuposição do
mal, e mal de origens metafísicas, não sociais
– saíram de cena para, talvez, não mais voltar,
ou voltar apenas em formas residuais, impuras. Uma grande
contraposição dualista entre tempos propícios
à tragédia e tempos desfavoráveis traveja
o livro, mas é a constatação da descontinuidade
da tradição do drama trágico – descontinuidade
que faz mesmo duvidar de uma tradição no sentido
exato da palavra – que está na base das leituras
penetrantes dos principais textos de cada momento particular.
Steiner tem o olho e o ouvido sumamente apurados para ler
e escutar em detalhes lexicais, ou mesmo tonais, os sintomas
do declínio que busca descrever. É genial,
por exemplo, o paralelo que estabelece entre passagens de
Woyzeck e de King Lear, demonstrando o quanto
Büchner deve a Shakespeare ao insistir na fragmentação
e aspereza das falas; aliás, Steiner reconhece na
peça de Büchner “a primeira tragédia
real da baixa vida”, a primeira tragédia que contradiz
a regra implícita no drama ático, elisabetano
e neoclássico, segundo a qual o sofrimento trágico
é prerrogativa de aristocratas.
Depois de Babel – que se apresenta, à primeira
vista, como um estudo sobre a tradução, mas
é também um magistral exercício de
literatura comparada e de filosofia da linguagem – pode
ser compreendido como uma ampliação e retificação
do modelo declinante de interpretação da cultura
proposto em A Morte da Tragédia. Ampliação
porque, agora, o foco não está restrito a
uma determinada forma poética (embora, por meio da
análise daquela forma, a história universal
se desse a reler), mas se abre sobre o corpus total
da linguagem e da cultura. Retificação porque
Steiner, aqui, deixa explícita a dialética
inerente ao declínio: a “ruína de Babel” pode
ser um “fardo”, mas é também “esplendor”.
Não por acaso, o estudo é dedicado aos poetas,
aqueles que, de acordo com Steiner, dão “vida à
linguagem” e sabem que “o ocorrido em Babel foi tanto um
desastre quanto (e essa é a etimologia da palavra
desastre) uma chuva de estrelas sobre o ser humano”,
uma chuva fecundante.
A idéia
central do livro (publicado originalmente em 1975, porém vertido a partir
de sua terceira edição ampliada, de 1998) é a de uma coincidência
integral entre compreender e traduzir e, portanto (o que pode soar mais controverso),
entre tradução e linguagem – e, dada a primordialidade da linguagem
na configuração da cultura, entre tradução e cultura.
Steiner afirma sem hesitar que “um estudo da tradução é um
estudo da linguagem”, observando, em acréscimo, que “a tradução
entre línguas é a principal preocupação deste livro,
mas é também uma entrada, uma abertura para uma investigação
sobre a linguagem em si”. Uma “teoria da tradução” (e vale lembrar
que Steiner desconfia do uso da palavra “teoria” nas ciências humanas) “é
necessariamente uma teoria, ou melhor, um modelo histórico-psicológico,
parte dedutivo, parte intuitivo, das operações de linguagem em si”.
Mas é a radiante metáfora epistemológica
em torno da qual se organiza o último capítulo
que concentra a retificação do modelo declinante:
a metáfora da topologia, extraída
do léxico da matemática, onde designa o tratamento
das propriedades geométricas de uma figura que permanecem
inalteradas quando esta sofre uma deformação
contínua. “Definida topologicamente’”, propõe
Steiner, “a cultura é uma seqüência de
traduções e transformações de
constantes.” (E, conforme acrescenta, quando admitirmos
que é disso que se trata e nos dispusermos a estudar
essas transformações, “chegaremos a uma compreensão
mais clara do motor lingüístico-semântico
da cultura e do que mantém diferentes línguas
e suas ‘áreas topológicas’ distintas entre
si”.) Aqui, o desenho vertical do declínio horizontaliza-se,
ou, mais exatamente, deixa de ser linear e finito, espacializa-se,
expande-se por novas dimensões. Essa abordagem topológica
convida à releitura de A Morte da Tragédia
e do livro de Steiner complementar àquele,
Antígonas, de 1984 (ainda sem edição
brasileira), no qual são estudadas comparativamente
as inúmeras retomadas do mito da filha de Édipo
desde a Antigüidade até o presente. Aceitando-se
o risco de algum reducionismo esquemático, pode-se
dizer que A Morte da Tragédia é pré-topológico,
enquanto Antígonas, seguindo Depois
de Babel, é já topológico: em
vez de declínio, temos a “invariância na transformação”,
ou, para lembrar duas fórmulas tipicamente steinerianas,
temos a exploração das múltiplas potencialidades
das “gramáticas da criação” mesmo numa
“pós-cultura” – mesmo depois de todos os desastres.
EDUARDO STERZI é doutor em Teoria e História Literária
pela Unicamp, autor de Prosa (IEL/CORAG, 2001)
e organizador de Do Céu do Futuro: Cinco Ensaios sobre
Augusto de Campos (Marco, 2006).
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